Rubem Braga - o fazendeiro do ar
"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São
Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em
voz baixa:
"Eu sou lá de Cachoeiro..."
Quando se fala em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, alguns saberão tratar-se da cidade em que nasceu o cantor Roberto Carlos. E pouquíssimos mencionarão o nome do escritor Rubem Braga, que lá nasceu em 12 de janeiro de 1913, e sempre levou consigo as lembranças da sua terra natal, com as quais preencheu boa parte das crônicas que escreveu.
Aos 15 anos foi enviado pela família para Niterói-RJ, onde moravam alguns parentes. Cursou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, tendo-se formado em 1932 na capital mineira. Além do Rio e BH, o velho Braga morou em São Paulo, Porto Alegre, Recife, Paris, Santiago e Rabat, capital do Marrocos, onde exerceu a função de embaixador, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. Como jornalista, acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na Itália, em luta contra as tropas fascistas. "Guerra é coisa triste", e concluiu: "Brincadeira de homem. Só tem homem lá". Mas não tinha vocação para cidadão do mundo. Certa vez escreveu: "Sou um homem do interior. Às vezes penso que merecia ser goiano".
Rubem Braga tinha o dom de garimpar na superfície do cotidiano um profundo sentimento lírico, ao qual ele alinhava o seu modo introspectivo de perceber a vida. Nada lhe escapava: pessoas, paisagens, os estados da alma, a natureza. Em particular, Braga elegeu a figura feminina como ponto central dos textos que escrevia. Para ele, a mulher representava "Um belo momento da aventura do ser humano sobre a Terra". Fosse um sorriso, um olhar furtivo, o perfume, uma luva, uma carta amarelecida pelo tempo, ou mesmo a simples presença despretenciosa de uma mulher ao seu lado, lá estava o Braga a confabular teorias sobre o espírito feminino.
Seus textos, escritos em linguagem simples e cristalina, não raro dão a passageira ilusão aos leitores de que também são capazes de escrever assim. Como definiu o poeta Hélio Pellegrino, trata-se da "difícil arte de escrever fácil". Talvez esta circunstância explique a sua predileção por um verso de Camões, o qual diz: "A grande dor das coisas que passaram".
Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.
A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.
Fontes de pesquisa:
Revista Vida Simples, abril de 2006.
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O Verão e as Mulheres
Rubem Braga
Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.
Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.
Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.
Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.
Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.
Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.
Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.
Março, 1953.
Extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 27.
O Pavão
Rubem Braga
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Rio, novembro, 1958.
Texto extraído do livro "Ai de ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.