domingo, 18 de dezembro de 2011

Natal


O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.


E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.


Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.


A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


Fernando Pessoa

ESPERANÇA




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


Mario Quintana

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A ceia dos invisíveis


     
É Natal! Por ocasião da data, a cidade encontra-se repleta de enfeites luminosos. Tão logo a tarde traz o arrebol, luzes intermitentes, numa profusão de cores dançantes, despontam nas ruas e avenidas, encantando os olhos de muitos e provocando vertigens em outros. De um modo estranho, a atmosfera parece mais leve e as pessoas tentam esboçar nas faces sombras de clandestina felicidade.

Pelas ruas do centro da cidade, sob o sol escaldante, homens desempregados ganham uns trocados metidos em disfarces de Papai Noel do terceiro mundo: barbas de poliéster encardidas, coturnos e roupas vermelhas de cetim barato. Corajosamente, a trupe de bons velhinhos aventura-se pelas calçadas apinhadas de pessoas que saem em busca de algum presente ou quinquilharia expostos nas prateleiras do comércio popular.

Em meio aos transeuntes e suas sacolas, figuras camufladas, diluídas na indiferença urbana, avançam pelas trincheiras da realidade. Um gari e sua vassoura, em vão, tentando conter a sujeira provocada pela multidão. No sinal fechado, a jovem garota distribui panfletos sobre um novo empreendimento imobiliário que desponta na região nobre da cidade. Sob a marquise de um prédio abandonado, um cego de pernas amputadas clama pela indulgência dos passantes. Quando o notam, algumas moedas são lançadas no fundo da lata enferrujada que mantém erguida pela calosa mão esquerda.

Chegada a tão esperada noite de Natal, é possível escutar o som vindo das casas e condomínios. Pessoas alegres distribuindo votos de paz e felicidade. As mesas enfeitadas incitam a gula das crianças que, impacientemente, correm pelos cômodos enquanto esperam a hora de avançar sobre os presentes colocados ao pé da árvore natalina. Do lado de fora, sob a garoa e contra o vento frio, um carroceiro segue, alheio ao movimento das pessoas nas portas das casas e prédios, recolhendo papelão e outros materiais recicláveis. Dentro da carroça, protegidas por uma lona amarela, mãe e filha espiam as casas enfeitadas e aquela gente sorridente, homens e mulheres abraçando uns aos outros como nunca visto. Ao revirar uma das lixeiras, o catador encontra uma boneca de cabelos loiros e vestido rosa. Tira do bolso um papel de presente – dourado com flores brancas em relevo – que havia guardado para esposa e improvisa um embrulho para o brinquedo. Entrega-o à menina que, ao abri-lo, não se contém de tanta felicidade. É o milagre do Natal!

E assim, a cada ano decorrido, as gerações vindouras, envoltas na vida tecnológica, aos poucos perdem da memória a história de um certo menino que há mais de dois mil anos nasceu numa pequena cidade palestina chamada Belém, dentro de um estábulo, em meio a alguns animais, e que recebeu o nome de Jesus. E na noite que muitos celebrarão festivamente o nascimento daquele menino, outros tantos, esquecidos nos leitos de hospitais, nos abrigos, nas ruas e nos rincões da pobreza espalhados por este país, estarão à mercê de toda indiferença humana, feito um homem de nome José, carpinteiro por profissão, a quem a vida conferiu o dom da suprema humildade e resignação.

* * *

Goiânia, 10 de dezembro de 2011

sábado, 10 de dezembro de 2011

O que é inspiração?


Revendo algumas coisas esquecidas pela memória, encontrei esse texto que publiquei em 12/04/2004. Lá se vão mais de 7 anos, mas nem parece tanto tempo assim. Incrível como o tempo nos foje ao controle... Mas sem maiores delongas, reproduzo este pequeno ensaio, que um dia intitulei O que é inspiração? - mensagem ao novo escritor. Ei-lo:

* * *

Inspiração... palavra tão misteriosa quanto mágica. Sempre fico vexado quando me perguntam coisas do tipo "como é que você imaginou escrever isso?". Certamente, se eu tivesse a resposta , seria o homem mais rico do planeta. 

Difícil dizer, mas fácil sentir. Sempre que penso no ato conceptivo da escrita, lembro das palavras de Cora Coralina em entrevista cedida à TV Cultura. Lembro de Cora, do alto dos seus 94 anos, dizendo que "a poesia está no lixo". Com essas simples palavras, até certo ponto contraditórias (poesia/lixo), Cora resumiu a ânsia que eu sentia em não saber dizer onde começa o umbigo do escrever. 

A poesia está em todos os lugares, literalmente no lixo, como certa feita escreveu João Cabral de Melo Neto no poema "O Bicho": 

Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio 
Catando comida entre os detritos. 
Quando achava alguma coisa, 
Não examinava nem cheirava: 
Engolia com voracidade. 
O bicho não era um cão, 
Não era um gato, 
Não era um rato. 
O bicho, meu Deus, era um homem. 

Rachel de Queiroz, em seu último artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado A INSPIRAÇÃO NÃO VEM PARA TODOS, bem diz que a inspiração é algo que "você sentindo vagamente que tem umas coisas para dizer ou uma história para contar. Ou, às vezes, ambas. Fica aquilo lá dentro, meio incômodo, meio inchado (na minha terra se diria como "uma dor incausada"), quando um belo dia a coisa dá para se mexer. Surgem frases já inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso confia-as à memória e depois as esquece. Dentro da enxurrada de frases e de idéias aparecem, então, as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão espírita - timidamente, imprecisamente. São uma cabeça, um silhueta, uma voz. Neste ponto, com as frases, pensamentos e criaturas (e mormente com o cenário, embora ainda não se haja falado nele), nessa altura, a história já se está arrumando. Você sabe mais ou menos o que contar". 

Explicar o que parece inexplicável... Deus existe? Pra onde vamos depois da morte? São respostas que não nos pertence. E a inspiração? Um conselho: respire fundo, se possível, debaixo de sombras benfazejas. Olhe as coisas ao redor. Mas nada de lançar olhares objetivos. Examine as minúcias da vida, esses infindáveis presentes que nos são dados diariamente e por nós tolamente ignorados. Assim, você aprenderá a apreender a essência transcendente da vida. E quando não mais aguentar de tanto que a sua cabeça pensa, você compreenderá o que é inspiração. 

domingo, 4 de dezembro de 2011

Saudade nativitana


Natividade...


Ao pé da serra
Das duras cangas
Emergiram teus homens
Desde a imemorial
Escravidão


Cada dia mais distante
Tuas lembranças correm
Ao largo
Pelas insondáveis planícies
Da minha solidão


(Glauber Ramos - Goiânia/GO - 02/12/2011)