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Mostrando postagens com o rótulo Poemas

CEMITÉRIO DOS NAVIOS

Aqui os navios se escondem para morrer.  Nos porões vazios, só ficaram os ratos  à espera da impossível ressurreição.  E do esplendor do mundo sequer restou  o zarcão nos beiços do tempo.  O vento raspa as letras  dos nomes que os meninos soletravam.  A noite canina lambe  as cordoalhas esfarinhadas  sob o vôo das gaivotas estridentes  que, no cio, se ajuntam no fundo da baía. Clareando madeiras podres e águas estagnadas,  o dia, com o seu olho cego, devora o gancho  que marca no casco as cicatrizes  do portaló que era um degrau do universo.  E a tarde prenhe de estrelas  inclina-se sobre a cabine onde, antigamente,  um casal aturdido pelo amor mais carnal  erguia no silêncio negras paliçadas.  Ó navios perdidos, velhos surdos  que, dormitando, escutam os seus próprios apitos varando a neblina, no porto onde os barcos  eram como um rebanho atra...

Semelhanças no dessemelhante

Se existe um tema que me deixa em constante desassossego é a nossa incapacidade de compreensão do próximo. Como é o sentir e o pensar do nosso semelhante? Por mais que a convivência se prolongue no tempo, poderíamos ousar dizer que "conhecemos" o outrem? Como bem advertiu o mestre João Guimarães Rosa, "Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia?" Para resolver a questão, acredito que somente um homem de muitos "eus" poderia fazê-lo, como o foi Fernando Pessoa, que um dia assim escreveu: Como é por dentro outra pessoa Como é por dentro outra pessoa   Quem é que o saberá sonhar?   A alma de outrem é outro universo   Como que não há comunicação possível,   Com que não há verdadeiro entendimento.  Nada sabemos da alma   Senão da nossa;   As dos outros são olhares,   São gestos, são palavras,   Com a suposição de qualquer semelhança   No fundo.      1934

CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO

A moça dança comigo nessa noite de dezembro. Na sala onde giramos se alguém mais há não me lembro. O ondear da moça ondeia uma melodia ainda mais doce que a da vitrola — e uma alegria vinda dessa doçura me envolve. Cabe bem no meu abraço esse perfume com que vou girando e em que me abraso em meus quinze anos (a moça terá, talvez, dezessete ou dezoito). Como a valsa, a vida o melhor promete. E já oferta: esse corpo a cada instante mais perto. Ao qual responde meu corpo, como nunca antes desperto. E a moça vai-me queimando em seu hálito, afogando-me nos cabelos, e nos olhos luminosos siderando-me! E eis que, dançando, saímos além da sala e do tempo. E dançando prosseguimos sempre que sopra dezembro, nos mesmos giros suaves, nos mesmos ledos enganos: eu, o antigo rapaz, e a moça, morta há treze anos. Ruy Espinheira Filho

contradança

pés na areia, corpo contra o vento sem nenhum pudor vamos dançar na antessala do tempo,  meninazinha,  onde sofrer é apenas uma forma de contemplar o amor Glauber R.

MATINAS

Somente após despir-se a noite Do seu negro véu ornado de sonhos e estrelas É que pode despertar manhã Abraçada pelas brumas do futuro Na flor matinal do seu  sorriso Colho meu sol De cada dia Glauber R.

Soneto de carnaval

por Vinicius de Moraes Distante o meu amor, se me afigura O amor como um patético tormento Pensar nele é morrer de desventura Não pensar é matar meu pensamento. Seu mais doce desejo se amargura Todo o instante perdido é um sofrimento Cada beijo lembrado uma tortura Um ciúme do próprio ciumento. E vivemos partindo, ela de mim E eu dela, enquanto breves vão-se os anos Para a grande partida que há no fim De toda a vida e todo o amor humanos: Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo Que se um fica o outro parte a redimi-lo. Oxford, 02.1939

Camões, nosso "pai"

1524 ou 1525: Datas prováveis do nascimento de Luís Vaz de Camões, talvez em Lisboa.  1548: Desterro no Ribatejo; alista-se no Ultramar.  1549: Embarca para Ceuta; perde o olho direito numa escaramuça contra os Mouros.  1551: Regressa a Lisboa.  1552: Numa briga, fere um funcionário da Cavalariça Real e é preso.  1553: É libertado; embarca para o Oriente.  1554: Parte de Goa em perseguição a navios mercantes mouros, sob o comando de Fernando de Meneses.  1556: É nomeado provedor-mor em Macau; naufraga nas Costas do Camboja.  1562: É preso por dívidas não pagas; é libertado pelo vice-rei Conde de Redondo e distinguido seu protegido.  1567: Segue para Moçambique.  1570: Regressa a Lisboa na nau Santa Clara.  1572: Sai a primeira edição d’ Os Lusíadas .  1579 ou 1580: Morre de peste, em Lisboa. (fonte: Vidas Lusófonas ) Para quem acha que a poesia de Luís Vaz de Camões pertence ao passado, nada melhor do que reler...

Natal

O sino da minha aldeia, Dolente na tarde calma, Cada tua badalada Soa dentro de minha alma. E é tão lento o teu soar, Tão como triste da vida, Que já a primeira pancada Tem o som de repetida. Por mais que me tanjas perto Quando passo, sempre errante, És para mim como um sonho. Soas-me na alma distante. A cada pancada tua, Vibrante no céu aberto, Sinto mais longe o passado, Sinto a saudade mais perto. Fernando Pessoa

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas Todos os reco-recos tocarem Atira-se E — ó delicioso vôo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: — Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!) Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA... Mario Quintana

Brasília nos versos de Nicolas Behr

ninguém me ama ninguém me quer ninguém me chama nicolas behr Nicolas Behr, forma abreviada que o poeta adotou para o seu nome solene: Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr. Nascido em Cuiabá-MT no ano de 1958, desde 1974 reside na capital federal. Sua obra situa-se dentro da chamada "geração mimeógrafo", movimento pós-tropicalista que buscava meios alternativos para a difusão de novas ideias, em contraponto aos meios editoriais tradicionais – por isso a utilização do mimeógrafo, considerada uma tecnologia de impressão mais acessível. Mas a geração mimeógrafo representava também um novo ideal de produção cultural. O próprio Nicolas Behr assim definiu: "a geração mimeógrafo surgiu com os 'não alinhados', só escrever não basta. Escrever é a ponta do iceberg, 'um poeta não se faz com versos', dizia Torquato Neto". Adiante, continua: "Geração mimeógrafo é antes de mais nada, uma atitude. Fazemos parte da geração do atalho, vam...

Saudade de Manuel Bandeira

Encontro canônico: Carlos Drummond, Vinicius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos Bela homenagem do "poetinha" Vinicius de Moraes ao amigo Manuel Bandeira, a quem considerava sua principal referência na poesia nacional.   Saudade de Manuel Bandeira Não foste apenas um segredo De poesia e de emoção Foste uma estrela em meu degredo Poeta, pai! áspero irmão. Não me abraçaste só no peito Puseste a mão na minha mão Eu, pequenino – tu, eleito Poeta! pai, áspero irmão. Lúcido, alto e ascético amigo De triste e claro coração Que sonhas tanto a sós contigo Poeta, pai, áspero irmão? (Vinicius de Moraes) Minha grande ternura Minha grande ternura Pelos passarinhos mortos; Pelas pequeninas aranhas. Minha grande ternura Pelas mulheres que foram meninas bonitas E ficaram mulheres feias; Pelas mulheres que foram desejáveis E deixaram de o ser. Pelas mulheres que me amaram E que eu não pude amar. Minha grande ternura Pelos poemas que Não consegui re...

CANÇÃO DE MIM MESMO

"Não pertenço a igreja nenhuma, não pertenço a partido político nenhum, não pertenço a associação literária nenhuma, não sou maçon, enfim, eu sempre quis viver individualmente". Com a devida vênia, faço minha as palavras daquele que para mim é o maior poeta brasileiro vivo, Nauro Machado . Dialogando com minha individualidade, evoco, à guisa de um velho xamã no seio da mata escura, os versos revolucionários do poeta norte-americano Walt Whitman (31/05/1819 - 26/03/1892), contidos no seu único e interminável livro - Folhas de relva . Dono de versos caudalosos onde celebra a vida, o amor, o sexo e os elementos da existência cotidiana, Whitman implodiu a poesia clássica baseada na métrica e no jogo de rimas, introduzindo o verso livre e dando nova dimensão à produção poética, a qual serviu de inspiração para todas as gerações de escritores que vieram depois dele. Canção de mim mesmo (fragmentos) - o mais famoso poema de Walt Whitman. CANÇÃO DE MIM MESMO (excertos) EU...

Estudo para uma ondina

Mais uma vez por aqui, os versos do mineiro Murilo Mendes (13/05/1901 - 13/08/1975), escritor por quem tenho grande apreço. E aqui, um dos seus poemas mais conhecidos, particularmente, um dos meus preferidos: Estudo para uma ondina . Estudo para uma ondina Esta manhã o mar acumula ao teu pé rosas de areia, Balançando as conchas de teus quadris. Ele te chama para longas navegações: Tua boca, tuas pernas teu sexo teus olhos escutaram. Só teus ouvidos é que não escutaram, ondina. Minha mão lúcida sacode a floresta do teu maiô. Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer. Tens quinze anos porque já tens vinte e sete, tens um ano apenas... Agora mesmo nasceste da espuma, E na incisão do ar líquido alcanças o amor dos elementos.