Pular para o conteúdo principal

A ceia dos invisíveis


     
É Natal! Por ocasião da data, a cidade encontra-se repleta de enfeites luminosos. Tão logo a tarde traz o arrebol, luzes intermitentes, numa profusão de cores dançantes, despontam nas ruas e avenidas, encantando os olhos de muitos e provocando vertigens em outros. De um modo estranho, a atmosfera parece mais leve e as pessoas tentam esboçar nas faces sombras de clandestina felicidade.

Pelas ruas do centro da cidade, sob o sol escaldante, homens desempregados ganham uns trocados metidos em disfarces de Papai Noel do terceiro mundo: barbas de poliéster encardidas, coturnos e roupas vermelhas de cetim barato. Corajosamente, a trupe de bons velhinhos aventura-se pelas calçadas apinhadas de pessoas que saem em busca de algum presente ou quinquilharia expostos nas prateleiras do comércio popular.

Em meio aos transeuntes e suas sacolas, figuras camufladas, diluídas na indiferença urbana, avançam pelas trincheiras da realidade. Um gari e sua vassoura, em vão, tentando conter a sujeira provocada pela multidão. No sinal fechado, a jovem garota distribui panfletos sobre um novo empreendimento imobiliário que desponta na região nobre da cidade. Sob a marquise de um prédio abandonado, um cego de pernas amputadas clama pela indulgência dos passantes. Quando o notam, algumas moedas são lançadas no fundo da lata enferrujada que mantém erguida pela calosa mão esquerda.

Chegada a tão esperada noite de Natal, é possível escutar o som vindo das casas e condomínios. Pessoas alegres distribuindo votos de paz e felicidade. As mesas enfeitadas incitam a gula das crianças que, impacientemente, correm pelos cômodos enquanto esperam a hora de avançar sobre os presentes colocados ao pé da árvore natalina. Do lado de fora, sob a garoa e contra o vento frio, um carroceiro segue, alheio ao movimento das pessoas nas portas das casas e prédios, recolhendo papelão e outros materiais recicláveis. Dentro da carroça, protegidas por uma lona amarela, mãe e filha espiam as casas enfeitadas e aquela gente sorridente, homens e mulheres abraçando uns aos outros como nunca visto. Ao revirar uma das lixeiras, o catador encontra uma boneca de cabelos loiros e vestido rosa. Tira do bolso um papel de presente – dourado com flores brancas em relevo – que havia guardado para esposa e improvisa um embrulho para o brinquedo. Entrega-o à menina que, ao abri-lo, não se contém de tanta felicidade. É o milagre do Natal!

E assim, a cada ano decorrido, as gerações vindouras, envoltas na vida tecnológica, aos poucos perdem da memória a história de um certo menino que há mais de dois mil anos nasceu numa pequena cidade palestina chamada Belém, dentro de um estábulo, em meio a alguns animais, e que recebeu o nome de Jesus. E na noite que muitos celebrarão festivamente o nascimento daquele menino, outros tantos, esquecidos nos leitos de hospitais, nos abrigos, nas ruas e nos rincões da pobreza espalhados por este país, estarão à mercê de toda indiferença humana, feito um homem de nome José, carpinteiro por profissão, a quem a vida conferiu o dom da suprema humildade e resignação.

* * *

Goiânia, 10 de dezembro de 2011

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bud Spencer & Terence Hill

Se havia algo capaz de me deixar extremamente feliz nos meus anos de infância e adolescência, certamente era quando os reclames do plim-plim anunciavam algum filme da dupla Bud Spencer e Terence Hill na Sessão da Tarde. Era diversão garantida, principalmente pelas atuações formidáveis de Spencer, com seu jeito mal humorado e seus socos potentes, que não raro levavam a nocaute vários adversários de uma só vez. Somente há pouco tempo (Deus salve a Wikipédia) descobri que os dois atores são italianos. Bud Spencer na verdade se chama Carlo Vicente Pedersoli, (Nápoles, 31 de outubro de 1929), e para minha grata surpresa foi um grande nadador, tendo participados das Olimpíadas de 1952, 1956 e 1960. Já Terence Hill, o galã da dupla, atende pelo nome de Mario José Girotti, e nasceu em Veneza no dia 29 de março de 1939. Não sei relacionar o nome dos filmes, porque o que importava para mim era a pancadaria rolando solta. Vale a pena rir um pouco com esses caras. Dois tiras fora de ordem - cen...

A saudade de Manoel de Barros

Ausente entre nós desde 13 de novembro de 2014, é inegável a falta que o poeta matogrossense Manoel de Barros nos faz. Em tempos de aspereza cada vez mais exacerbada, a ausência da sua candura e o seu olhar onírico sobre a vida faz desse mundo um lugar mais pálido, menos interessante.  A seguir, alguns poemas de Manoel de Barros, para que possamos recobrar a inocência outrora perdida. O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de des...

BETSY

Um conto de Rubem Fonseca O escritor norte-americano Ernest Hemingway ao lado de um dos muitos gatos que criava, algo em torno de 50 bichanos. Ainda hoje, em sua antiga casa na ilha de Key West, Flórida, hoje transformada em museu, vivem inúmeros felinos da espécie, descendentes dos primeiros gatos que ali chegaram. BETSY Betsy esperou a volta do homem para morrer. Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fa...