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Pílulas do Grande Sertão

João Guimarães Rosa preparando-se para sair em comitiva pelos sertões mineiros

Não esboçarei qualquer tentativa de resenha acerca deste livro. Basta uma rápida visita ao Google e o internauta encontrará monografias, teses, dissertações, tratados e afins dando conta do universo roseano descrito nas páginas do Grande Sertão: Veredas. O idioma fica à escolha do leitor, já que a obra foi traduzida para o italiano, alemão, inglês, francês, espanhol... em inglês, o livro foi batizado com o título The Devil to Pay in the Backlands, certamente em referência à frase constantemente repetida pelo jagunço Riobaldo, “o diabo na rua, no meio do redemunho”.

O que posso dizer é que com este livro o Brasil certamente ganharia um Nobel de Literatura. Os editores estrangeiros já haviam decidido lançar o nome de Guimarães Rosa como candidato ao prêmio. Mas João partiu antes. Ou como ele dizia, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”.

A idéia das “Pílulas do Grande Sertão” eu retirei do site Poesia.net. A elas acrescentei algumas pílulas garimpadas por mim, ao longo da minha terceira leitura deste que,na minha singela opinião, é a maior obra edificada sob o idioma português, ou melhor dizendo, roseano.


Coração de gente — o escuro, escuros.

Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.

Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.

No sistema de jagunços, amigo era o braço, e o aço!

Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.

O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!

Quem muito se evita, se convive.

Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.

O que lembro, tenho.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.

Quem mói no asp'ro não fantaseia.

Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente.

Vingar... é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.

Comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.

Toda saudade é uma espécie de velhice.

Riu de me dar nojo. Mas nojo medo é, é não?

Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor.

Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.

Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

Feito flecha, feito fogo, feito faca.

Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem.

Tudo é e não é.

Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

O sertão é do tamanho do mundo.

Sertão é dentro da gente.

O sertão é sem lugar.

O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.

O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.

O sertão é uma espera enorme.

Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.

A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.

A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão e as vertentes do viver.

O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo.

Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços.

Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza.

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

A mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa.

O mal ou o bem, estão é quem faz; não no efeito que dão.

Viver é etcétera...

O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia.

Confiança - o senhor sabe - não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.

O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.

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