sábado, 22 de setembro de 2012

O carcará encantado


Numa dessas manhãs nubladas em que a vida se enche de saudosismo, fui tomado pelas memórias do meu tempo como estagiário de direito, em especial aquelas dos dias em que a instituição na qual servia entrou em greve. Na ocasião, por determinação da chefia superior, ao menos um dos estagiários deveria ficar de plantão em cada turno, a fim de atender algum caso urgente que viesse a aparecer.

Dentre as pessoas que laboravam na repartição, guardo ainda viva a lembrança da faxineira que diariamente limpava o lugar, de nome Andréia, que a todos cativava com seu jeito simples e espontâneo. Não me recordo, porém, se ela alguma vez chegou a pronunciar meu nome, pois usualmente tratava a todos pelo epíteto “irmão”.

O fato é que a “irmã” Andréia estava grávida; a barriga proeminente denunciava que o parto estava próximo. Em algumas ocasiões a surpreendi fumando no estacionamento. Chamava sua atenção, explicando que o cigarro era prejudicial a ela e ao bebê. “Vou fumar só esse por hoje, irmão” – displicentemente respondia.

Em um dia modorrento, onde o tempo se arrastava com a velocidade de um velho caramujo, a “irmã” adentrou a minha sala, encontrando-me diante do computador ouvindo uma rádio virtual. Pelos alto-falantes saía o memorável show Opinião, estrelado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Ali, naquelas vozes, vários “Brasis” se encontravam: a classe média carioca, representada pela bossa nova de Nara Leão; o morro e suas súplicas, suas alegrias e tristezas, cantadas por um dos seus intérpretes maiores, Zé Keti; e o Brasil "de dentro", da caatinga e de todos os sertões afins, representado pelo lirismo sertanejo do inesquecível João do Vale.

Mas eram as letras e a história de vida do maranhense João do Vale que me levavam a um outro lugar, certamente alguma gleba perdida na infância. Igualmente maranhense, só que pela linhagem paterna, para mim seria impossível não encontrar nele laços de identidade. Em 1996, quando da sua morte, foi noticiado o falecimento do autor de “Carcará”, música imortalizada na voz de Maria Bethânia. Menino analfabeto de Pedreiras, interior do Maranhão, fugiu de casa para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Mesmo tendo sido gravado por nomes como Edu Lobo, Fagner, Tim Maia, Zé Ramalho, Chico Buarque, Tom Jobim, Miúcha, Paulinho da Viola, entre tantos outros, João do Vale foi relegado à vala comum do esquecimento. 

Sobre a “irmã” que naquela ocasião me espreitava curiosa... perguntei a ela se já tinha ouvido falar naquele nome, João do Vale. Sem alarde, para meu espanto ela respondeu: “Ele era meu tio, irmão”. Quis saber então onde ela tinha nascido. “Eu nasci em Pedreiras, lá no Maranhão”. Fiz outras perguntas, e as respostas condiziam fielmente com a biografia dele. Andréia então me relatou que João do Vale era irmão de sua avó materna. Ela mesma o vira algumas vezes, quando criança. E disse-me que João era um homem simples, tendo como fraqueza maior a cachaça. Contou ainda sobre o retorno dele a Pedreiras, em definitivo, já vitimado por um derrame. E falou-me da praça que leva o seu nome, e do seu local de nascimento, Lago da Onça, zona rural daquele município.

Nunca mais tive notícias de Andréia, mas espero que ela tenha largado o cigarro. Sobre João do Vale, ainda acredito que ele e sua obra serão imortalizados. Afinal, como certa vez escreveu outro João, de sobrenome Guimarães Rosa, “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

* * *

Goiânia, 30 de agosto de 2009.

domingo, 20 de maio de 2012

A última noite da sua vida


Já passavam das dez da noite quando ele foi surpreendido por um clarão que invadiu o seu quarto. O que seria aquilo, um contato extraterrestre? Um anjo da anunciação?

Não importava. Ateve-se exclusivamente àquela voz límpida, sobrenatural, jamais experimentada pelos seus ouvidos, que simplesmente lhe disse: - Com a primeira luz do sol, você não estará mais nesse mundo.

O que fazer de agora em diante? A pureza e a mansidão daquela voz não deixaram dúvidas, de fato sua vida não ultrapassaria aquela noite. Não amanheceria como nos outros dias, quando acordava mal disposto para o trabalho. Não teria que escutar o despertador às seis e quinze da manhã, entrar embaixo da ducha morna, escovar os dentes e tomar café na companhia da mãe. Deveria avisá-la que seria desnecessário mais um prato e um copo na mesa da manhã seguinte? Pensou que seria demasiado cruel.

Aliás, ela não acreditaria. Talvez deixasse um bilhete, quem sabe avisando que fugiria para sempre, que não aguentava mais aquela vida. Ela pediria por socorro, avisaria a polícia, mas jamais o encontraria. Um profundo desgosto, é verdade, mas ao menos alimentaria a esperança de que o filho ainda estivesse vivo. Com sorte, poderia enlouquecer, e quem sabe assim viver numa realidade paralela, convivendo com pessoas e lugares imaginários e de tempos em tempos, receber a visita do filho desaparecido.

Queria chorar? Não sabia ao certo. Não sabia se sentia medo do que haveria por vir após a aurora. Recordou os avós falecidos e pensou na possibilidade de reencontrá-los. Balela, nunca acreditou nessas coisas espirituais. Mal se lembrava da última vez que havia entrado no interior de uma igreja, tampouco sabia rezar.

Deveria sair, ir para a rua, encher a cara num bar e procurar a companhia de uma prostituta? A princípio, considerou a possibilidade, mas depois de achá-la ridiculamente juvenil, brincadeira de adolescentes, mudou de ideia. Deveria fazer algo que deixasse gravado no tempo a sua efêmera existência, mas tipo o que? Não se aventuraria a bancar o herói correndo atrás de bandido, estilo homem-aranha, poderia morrer com um tiro no peito antes mesmo da hora marcada. Pensou em escrever algo grandioso, um poema épico que pudesse divulgar em seu perfil de rede social, mas a única coisa que sabia escrever eram versos bobos e repetitivos, alimentados pelas poucas desilusões amorosas que acumulou ao longo da vida.

Deveria avisar alguém, mas quem? Já havia descartado dar a notícia à mãe. O pai morava longe, em outro estado, e há mais de dois anos não o via. Sabia de algumas fontes que o velho não andava bem de saúde, e uma notícia dessa natureza poderia piorar o seu quadro. Falaria com quem então? Pensou em ligar para sua ex namorada, com que havia terminado há quase um ano. Mas lembrou que ela havia trocado de número, fato este que ele descobriu por acaso quando inutilmente tentou ligar para ela no final do ano passado, e somente dava caixa de mensagem. Dos ex colegas de faculdade, com apenas um mantinha contato casual, mas o cara tinha mania de criticá-lo nos tempos da graduação e hoje vivia numa situação difícil, dois filhos pequenos e um emprego que mal custeava os gastos básicos. Uma ligação e o cara se colocaria a reclamar da vida para todo o sempre. Em seu trabalho, a situação era pior, convivia com aquele pessoal apenas durante o expediente. Após, não tinha mais notícias de ninguém, sequer sabia o bairro onde morava cada um.

O que fazer então? Ligou o computador e montou uma set list com suas músicas preferidas. Foi ao guarda-roupa e da parte de cima retirou uma garrafa de uísque importada, ainda lacrada, na qual havia gastado uma nota preta. Vagarosamente foi à cozinha, pegou algumas pedras de gelo e as trouxe para o quarto. Com o copo na mão e a música rolando, sentiu-se reconfortado, um privilegiado, que poderia ter um momento de prazer antes de dizer o adeus derradeiro.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

CEMITÉRIO DOS NAVIOS


Aqui os navios se escondem para morrer. 


Nos porões vazios, só ficaram os ratos 
à espera da impossível ressurreição. 


E do esplendor do mundo sequer restou 
o zarcão nos beiços do tempo. 


O vento raspa as letras 
dos nomes que os meninos soletravam. 


A noite canina lambe 
as cordoalhas esfarinhadas 


sob o vôo das gaivotas estridentes 
que, no cio, se ajuntam no fundo da baía.


Clareando madeiras podres e águas estagnadas, 
o dia, com o seu olho cego, devora o gancho 


que marca no casco as cicatrizes 
do portaló que era um degrau do universo. 


E a tarde prenhe de estrelas 
inclina-se sobre a cabine onde, antigamente, 


um casal aturdido pelo amor mais carnal 
erguia no silêncio negras paliçadas. 


Ó navios perdidos, velhos surdos 
que, dormitando, escutam os seus próprios apitos


varando a neblina, no porto onde os barcos 
eram como um rebanho atravessando a treva!


Lêdo Ivo

quarta-feira, 4 de abril de 2012

História do Samba

Pra quem gosta de samba de verdade, e deseja conhecer a fundo as raízes desse gênero musical, bem como a história dos artistas que o tornaram popular, aí vai o endereço certo:

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Semelhanças no dessemelhante


Se existe um tema que me deixa em constante desassossego é a nossa incapacidade de compreensão do próximo. Como é o sentir e o pensar do nosso semelhante? Por mais que a convivência se prolongue no tempo, poderíamos ousar dizer que "conhecemos" o outrem? Como bem advertiu o mestre João Guimarães Rosa, "Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia?"

Para resolver a questão, acredito que somente um homem de muitos "eus" poderia fazê-lo, como o foi Fernando Pessoa, que um dia assim escreveu:



Como é por dentro outra pessoa

Como é por dentro outra pessoa  
Quem é que o saberá sonhar?  
A alma de outrem é outro universo  
Como que não há comunicação possível,  
Com que não há verdadeiro entendimento. 


Nada sabemos da alma  
Senão da nossa;  
As dos outros são olhares,  
São gestos, são palavras,  
Com a suposição de qualquer semelhança  
No fundo.  

  1934



sexta-feira, 30 de março de 2012

Onírica

Frio noturno. Acima das retinas, o silencioso deslizar da lua e o brilho em vigília de uma estrela longínqua, a lançar seu lume clarificado por sobre águas revoltas de destinos incertos. Havia um rumor de coração, e com ele o soçobrar de memórias inquietas, naufragadas ao primeiro sono. E um sonho de nítidas formas e cores, nascido de alguma realidade sobrenatural, por onde trazias um sorriso embevecido, há muito esquecido nos labirintos de feridas mal cicatrizadas. E despertei, acreditando que por alguns instantes contemplara a face da paz...

sexta-feira, 23 de março de 2012

CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO

A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos
se alguém mais há não me lembro.


O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda


dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso


em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.


E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.


E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!


E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos
sempre que sopra dezembro,


nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.


Ruy Espinheira Filho

Adeus ao verão

Partem em revoada as derradeiras nuvens negras outrora adormecidas na profundeza celestial. Há dentro da noite um vento frio que sopra na copa das árvores, e um brilho de luar refratário, quase melancólico. Pairam no pensamento lembranças errantes, arrefecidas ao final de mais uma estação. É terminado o verão...

quarta-feira, 14 de março de 2012

Encontros

Encontros inesperados, de gênios que revolucionaram a música e a nossa visão do mundo!

Michael Jackson e Freddie Mercury

Renato Russo e Cazuza

George Harrison e Bob Marley

Johnny Cash e Elvis Presley

John Lennon e Ernesto Che Guevara

Jimi Hendrix e The Who

terça-feira, 6 de março de 2012

contradança


pés na areia, corpo contra o vento
sem nenhum pudor
vamos dançar na antessala do tempo, 
meninazinha, 
onde sofrer
é apenas uma forma de contemplar
o amor


Glauber R.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O estudo da gramática

por Rubem Fonseca


Você está triste?

Não sei. Talvez.

Tristeza dá câncer, sabia?

Pensei que dava verruga no nariz.

Estou falando sério.

Ultimamente você vive falando sério.

Quando eu brincava você reclamava.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

Você colocou vírgula depois de mar.

Estou falando, não estou escrevendo.

Mas na sua fala tinha uma vírgula depois de mar?

Não. Você está fazendo uma análise sintática e morfológica da frase?

Na frase há o uso da figura de sintaxe chamada elipse.

Chega. É por coisas assim que eu não quero mais viver com você.

Porque eu sei gramática e você não?

Entre outras coisas.

Não gosta mais de foder comigo?

Usarei uma elipse aqui. Ou melhor, uma zeugma.

Zeugma é um substantivo masculino.

Um zeugma, então.

Significando?

Que é fácil subentender.

Subentender por que você não gosta mais de foder comigo?

Precisamente. Pensa.

Estou pensando e não consigo.

Pensa em nós dois na cama.

Você sempre se manifesta pomposamente na hora do orgasmo.

Pomposamente? Explica.

Exibição de magnificência sensual. Mímica.

Mímica?

Mímica. Muito bem-feita.

Vou fazer as malas. Diga: já vai tarde.

Já vai tarde.

E esses olhos úmidos de lágrimas?

Mímica.

Acho que vou ficar mais um pouco.

Um pouco?

Uns dias.

Dias?

Pensando bem, uns meses. Mas você me ensina gramática durante esse tempo.

Então deixa de ficar triste.

Tenho uma razão. Já estou com câncer.

Jura?

Juro. Pulmão. O cigarro.

Meu amor, vou cuidar de você.

Mas antes me ensina gramática

Texto extraído de "Axilas e outras histórias indecorosas", de Rubem Fonseca, Editora Nova Fronteira - 2011


Retirado do site Releituras.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

MATINAS

Somente após despir-se a
noite
Do seu negro véu ornado de
sonhos e estrelas
É que pode despertar
manhã
Abraçada pelas brumas do
futuro


Na flor matinal do seu sorriso
Colho meu sol
De cada dia


Glauber R.

Soneto de carnaval

por Vinicius de Moraes

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.


Oxford, 02.1939

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Nauro em primeira pessoa

Sensacional documentário retratando a poesia e o cotidiano do genial poeta maranhense Nauro Machado, onde o próprio despe-se de qualquer pudor para dar vida aos seus versos.

Camões, nosso "pai"


1524 ou 1525: Datas prováveis do nascimento de Luís Vaz de Camões, talvez em Lisboa. 
1548: Desterro no Ribatejo; alista-se no Ultramar. 
1549: Embarca para Ceuta; perde o olho direito numa escaramuça contra os Mouros. 
1551: Regressa a Lisboa. 
1552: Numa briga, fere um funcionário da Cavalariça Real e é preso. 
1553: É libertado; embarca para o Oriente. 
1554: Parte de Goa em perseguição a navios mercantes mouros, sob o comando de Fernando de Meneses. 
1556: É nomeado provedor-mor em Macau; naufraga nas Costas do Camboja. 
1562: É preso por dívidas não pagas; é libertado pelo vice-rei Conde de Redondo e distinguido seu protegido. 
1567: Segue para Moçambique. 
1570: Regressa a Lisboa na nau Santa Clara. 
1572: Sai a primeira edição d’Os Lusíadas
1579 ou 1580: Morre de peste, em Lisboa.


Para quem acha que a poesia de Luís Vaz de Camões pertence ao passado, nada melhor do que reler um poema do pai da língua portuguesa extremamente atual e vigoroso, escrito há mais de 400 anos. Somente a poesia de um gigante pode sobreviver incólume por tanto tempo.


MUDAM-SE OS TEMPOS...

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
muda-se o ser, muda-se a confiança; 
todo o mundo é composto de mudança, 
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades, 
diferentes em tudo da esperança; 
do mal ficam as mágoas na lembrança, 
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto, 
que já coberto foi de neve fria, 
e, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia, 
outra mudança faz de mor espanto, 
que não se muda já como soía.  


E ao mestre maior, o poeta gaúcho Carlos Nejar dedicou seus versos:



Luís Vaz de Camões


Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei 
a pátria injustamente
cega, como eu, num 
dos olhos. E não pôde 
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei 
ser pai de santos filhos.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O velho Clint salva o macho da extinção

Por Xico Sá



E o mundo não se acabou.

O crepúsculo do macho-jurubeba, inimigo público declarado dos novos costumes metrossexuais, foi adiado mais uma vez.
O responsável pela façanha foi, para variar, o velho Clint, Clint Eastwood, 80, que na semana passada vetou o uso de photoshop na capa da reviste “M”, do jornal francês “Le Monde”.
Só o Peréio e o Clint salvam.
Homem que é homem não pode se envergonhar das rugas que fizeram residência nos seus rostos.
Outro que também se revelou adepto do jurubebismo, para nossa surpresa, foi o físico britânico Stephen Hawking, que completou ontem 70 anos.
Com dois casamentos e três filhos, revelou que pensa mais nas mulheres do que nos mistérios do buraco negro e outros enigmas do cosmo. Bravíssimo.
Além do Clint, do Peréio e agora do Hawking, especula-se sobre a existência de uma meia dúzia do gênero no Brasil.
No Crato, por exemplo, existiriam dois, ali na subida da serra a caminho do Exú.
Há quem diga ter visto outro na Mooca, SP. Um quarto teria catalogado na Bomba do Hemetério, no Recife.
Você conhece algum?
Ajude-nos a localizá-lo. Campanha de utilidade pública para salvar estes seres da extinção.
Falo do macho roots, conservado em barris de carvalho, o homem ainda com todos os seus defeitos de fábrica, todos os componentes em ordem.
É, ainda há esperança, velho Clint. Os machos ainda não dançaram de vez, como dizia o título daquele romance de mr. Norman Mailer.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

CALEIDOSCÓPIO


Que lá sei eu dos insondáveis mistérios da vida e da morte? Pertenço a tempo algum? Houve um instante em que eu sequer existia. Hoje, assisto-me transmutado no corpo de um homem que acorda, trabalha, faz suas refeições regulares, por vezes ri de si mesmo e ao final de cada dia dorme, à espera de sonhos purificados, intocados pela decadência humana.

Que certezas carrego? Sei do sol que curte minha pele nas primeiras horas da manhã, da primavera que deita suas flores pelos jardins ocultos da cidade, das constelações que há milênios guiam os homens pela face da Terra.

Sei da poeira dos meus antepassados que diuturnamente respiro, das malfadadas histórias de amor contadas pelos poetas suicidas, do silêncio que cobre os jazigos de quem um dia partiu e hoje se sente saudades.

Dolorosamente, sei que sou o resultado não das coisas que fiz, mas daquelas que deixei de realizar. A única certeza que me resta é a dúvida. 

Goiânia, 13 jan 2012.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

«E N T R E A S P A S»


"Só os deuses podem prometer, porque são imortais"

Jorge Luis Borges (1899 / 1986) escritor argentino

domingo, 8 de janeiro de 2012

GIBRALTAR



A verdade é que nem moravam longe um do outro. Setores diferentes da cidade, mas fronteiriços.

Todavia, há mais de ano não se viam, e há vários meses deixaram de trocar palavras. Sem brigas, rancores ou remorsos. É “a vida que segue”. Não é assim que diz toda sexta-feira pela manhã um certo apresentador de telejornal?

E cada um deles agora habitava o seu universo particular, cultivando amores, desejos e frustrações. De olhos bem abertos, sob a luz que nos guia e nos aquece a alma.

Há horas, porém, que os corpos tomados pelo sono adentram as paisagens oníricas de uma certa existência paralela a que chamam de sonhos. Seres míticos, paisagens surreais e o tempo que, ao nos tocar a face, nos rejuvenesce, em vez de ficarmos mais velhos. E nessas horas de devaneio, de “acordar-se para dentro”, como definiu Quintana, retomamos o diálogo esquecido. Mas sempre é chegada a hora de “acordar-se para fora” e novamente encarar a aspereza da vida, por vezes bela – a vida – e hastear as suas velas, à espera do vento que possa conduzi-la por mares menos tormentosos.


Haveria uma despedida? Melhor deixar as coisas no estado em que se encontram, adormecidas, serenadas e sepultadas pelo tempo que um dia os uniu, como dois continentes fragmentados pela incansável força da natureza.

Reflexão


Se Deus não existisse, o homem seria incapaz de realizar o bem.

Glauber Ramos

sábado, 7 de janeiro de 2012

Criolo Doido


O cara é foda mesmo. Depois de ter sido homenageado publicamente por Chico Buarque durante um show deste, em agradecimento à versão do rapper para a música "Cálice", Criolo se consagrou como o grande vencedor do VMB 2011, faturando os prêmios de Melhor Disco com o álbum Nó na Orelha (2010), Melhor Música, com a canção Não existe amor em SP, além de ter sido escolhido o artista Revelação. Justo reconhecimento de um artista que há um bom tempo vem trabalhando duro nas quebradas do cenário musical brasileiro.

E a boa notícia: o cara disponibilizou o disco Nó na Orelha pra download em seu site pessoal. Só dar uma conferida: www.criolo.net


Cálice (por Criolo)


Como ir pro trabalho sem levar um tiro
Voltar pra casa sem levar um tiro
Se as três da matina tem alguém que frita
E é capaz de tudo pra manter sua brisa


Os saraus tiveram que invadir os botecos
Pois biblioteca não era lugar de poesia
Biblioteca tinha que ter silêncio,
E uma gente que se acha assim muito sabida


Há preconceito com o nordestino
Há preconceito com o homem negro
Há preconceito com o analfabeto
Mais não há preconceito se um dos três for rico, pai.


A ditadura segue meu amigo Milton
A repressão segue meu amigo Chico
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai.


Afasta de mim a biqueira, pai
Afasta de mim as biate, pai
Afasta de mim a coqueine, pai
Pois na quebrada escorre sangue,pai.


Pai
Afasta de mim a biqueira, pai
Afasta de mim as biate, pai
Afasta de mim a coqueine, pai.
Pois na quebrada escorre sangue.


Bogotá

Não existe amor em SP


Lion Man

Subirusdoistiozin

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

sobre nada

Me pediram para que escrevesse uma crônica para a edição dominical de certo jornal. Minto. Pediram porra nenhuma. Apenas inventei essa circunstância a fim de dar vazão às palavras represadas em minha mente, que teimosamente insistem em repelir o branco do papel.

Teve uma chuva que acabou há pouco aqui na capital goiana. Restou apenas a garoa fina. Os garotos do prédio ao lado conversam alto na portaria, suas vozes repercutem como se estivessem no interior da minha sala. Lembro dessa época, minha garotice no interior do Tocantins... que pensava eu àquelas alturas? Navegava no raso da vida, apenas o trivial do existir. Estudar, arrumar emprego, comprar carro, casa. Acho que nem isso pensava. Se pensei, deixei por lá, enterrado sob as cangas do meu rincão natal.

É começo de ano, e parece de bom tom fazer promessas, se esforçar para ser alguém melhor. Sei que não fiz nada disso. Se um ano passou e outro começou, isso só ocorreu porque convencionamos dividir o tempo. Passarinho lá sabe o que é ano novo? Ele conhece é as estações do ano, quando faz chuva ou sol, quando se é prudente cantar e arrumar uma companheira pra acasalar e até mesmo a hora de morrer, em que pesem nunca terem achado o corpo de algum deles após morrer de simples velhice. Será que morrem de verdade, digo, naquelas ocasiões em que não são alvo de pedrada de estilingue, comida com veneno ou tiro de espingarda de pressão? Tolices...

Encerro aqui o que não comecei. Como certa vez escreveu o gaúcho Fabrício Carpinejar, “tornei-me o diário de uma viagem cancelada”. E você, caro amigo leitor, não perca seu tempo lendo bobagens, o tempo é valioso, valioso demais e cabe a você não deixá-lo escoar displicentemente pelo ralo da futilidade. Esteja em paz.