Já passavam das dez da noite
quando ele foi surpreendido por um clarão que invadiu o seu quarto. O que seria
aquilo, um contato extraterrestre? Um anjo da anunciação?
Não importava. Ateve-se
exclusivamente àquela voz límpida, sobrenatural, jamais experimentada pelos
seus ouvidos, que simplesmente lhe disse: - Com a primeira luz do sol, você não
estará mais nesse mundo.
O que fazer de agora em diante? A
pureza e a mansidão daquela voz não deixaram dúvidas, de fato sua vida não ultrapassaria
aquela noite. Não amanheceria como nos outros dias, quando acordava mal
disposto para o trabalho. Não teria que escutar o despertador às seis e quinze
da manhã, entrar embaixo da ducha morna, escovar os dentes e tomar café na
companhia da mãe. Deveria avisá-la que seria desnecessário mais um prato e um
copo na mesa da manhã seguinte? Pensou que seria demasiado cruel.
Aliás, ela não acreditaria.
Talvez deixasse um bilhete, quem sabe avisando que fugiria para sempre, que não
aguentava mais aquela vida. Ela pediria por socorro, avisaria a polícia, mas
jamais o encontraria. Um profundo desgosto, é verdade, mas ao menos alimentaria
a esperança de que o filho ainda estivesse vivo. Com sorte, poderia
enlouquecer, e quem sabe assim viver numa realidade paralela, convivendo com
pessoas e lugares imaginários e de tempos em tempos, receber a visita do filho
desaparecido.
Queria chorar? Não sabia ao
certo. Não sabia se sentia medo do que haveria por vir após a aurora. Recordou
os avós falecidos e pensou na possibilidade de reencontrá-los. Balela, nunca
acreditou nessas coisas espirituais. Mal se lembrava da última vez que havia
entrado no interior de uma igreja, tampouco sabia rezar.
Deveria sair, ir para a rua,
encher a cara num bar e procurar a companhia de uma prostituta? A princípio,
considerou a possibilidade, mas depois de achá-la ridiculamente juvenil,
brincadeira de adolescentes, mudou de ideia. Deveria fazer algo que deixasse
gravado no tempo a sua efêmera existência, mas tipo o que? Não se aventuraria a
bancar o herói correndo atrás de bandido, estilo homem-aranha, poderia morrer com
um tiro no peito antes mesmo da hora marcada. Pensou em escrever algo
grandioso, um poema épico que pudesse divulgar em seu perfil de rede social,
mas a única coisa que sabia escrever eram versos bobos e repetitivos,
alimentados pelas poucas desilusões amorosas que acumulou ao longo da vida.
Deveria avisar alguém, mas quem?
Já havia descartado dar a notícia à mãe. O pai morava longe, em outro estado, e
há mais de dois anos não o via. Sabia de algumas fontes que o velho não andava
bem de saúde, e uma notícia dessa natureza poderia piorar o seu quadro. Falaria
com quem então? Pensou em ligar para sua ex namorada, com que havia terminado
há quase um ano. Mas lembrou que ela havia trocado de número, fato este que ele
descobriu por acaso quando inutilmente tentou ligar para ela no final do ano
passado, e somente dava caixa de mensagem. Dos ex colegas de faculdade, com
apenas um mantinha contato casual, mas o cara tinha mania de criticá-lo nos
tempos da graduação e hoje vivia numa situação difícil, dois filhos pequenos e
um emprego que mal custeava os gastos básicos. Uma ligação e o cara se
colocaria a reclamar da vida para todo o sempre. Em seu trabalho, a situação
era pior, convivia com aquele pessoal apenas durante o expediente. Após, não
tinha mais notícias de ninguém, sequer sabia o bairro onde morava cada um.
O que fazer então? Ligou o
computador e montou uma set list com
suas músicas preferidas. Foi ao guarda-roupa e da parte de cima retirou uma
garrafa de uísque importada, ainda lacrada, na qual havia gastado uma nota
preta. Vagarosamente foi à cozinha, pegou algumas pedras de gelo e as trouxe
para o quarto. Com o copo na mão e a música rolando, sentiu-se reconfortado, um
privilegiado, que poderia ter um momento de prazer antes de dizer o adeus
derradeiro.
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