terça-feira, 31 de maio de 2011

O ARCANJO

Incólume,
um homem seguia em meio
aos transeuntes.
Os passos largos, porém
não apontavam direção alguma.

Sentou-se
e naquele instante foi decretado seu exílio
espécie de aborto, onde se viu expurgado
de todas as relações humanas
da vida
do mundo.

As palavras feneceram
em sua boca magra
os gestos brancos
inaudíveis como os passos do vento
não despertavam a curiosidade alheia.

Tudo lhe era confuso,
numa profusão de dúvida e terror.
Em seu peito, o tempo veloz fazia sibilar
os sinos da morte.

Foi quando uma dor pungente
o fez despertar
seu grito ecoou por ruas, praças, edifícios
e toda gente parou.

Sorrindo,
de suas costas viu brotar asas portentosas.
Os olhos fixos no infinito
subitamente ascendeu às plagas celestiais
até se fundir por completo
no granito azul do firmamento.

Glauber R.

* * *

Goiânia, 02 maio 2007.


Ouvindo agora:



Lele ft. Radiohead - High and Dry

domingo, 29 de maio de 2011

E ela domingava num domingo toda de branco...

Normal Rockwell, o pintor do "American Way of Life"

E o que nos restou neste domingo? Os fracassos da semana que passou? O álcool diluído nas veias após a noitada de sábado? Enfim, cada um que colha seu dia como melhor lhe aprouver, conforme nos ensinou o poeta romano Horácio: Carpe Diem.

Da parte que me cabe, faço minha as palavras do cantor e compositor Lionel Richie:  I'm easy like Sunday morning - estou tranquilo como uma manhã de domingo.

Maceo Parker e Fred Wesley - House Party

Mayer Hawthorne - Maybe So Maybe No

 Donavon Frankenreiter - Move by Yourself

Quintal das lembranças



Torquato Neto - o anjo torto

Torquato Neto nasceu no dia 9 de novembro de 1944 em Teresina, capital do Piauí. Aos 16 anos de idade, Torquato mudou-se para Salvador e frequentou juntamente com Gilberto Gil, seu futuro parceiro em várias canções, o Colégio Nossa Senhora da Vitória. Também na capital baiana entrou em contato com Caetano, Bethânia e o Cinema Novo de Glauber Rocha, tendo participado como assistente no filme Barravento.

A amizade com os baianos da Tropicália seguiu quando mudou-se para o Rio de Janeiro, a então capital federal. Estudou jornalismo, mas não chegou a se formar. Fortemente envolvido com o cinema marginal, as artes plásticas, a Tropicália e os poetas de vanguarda do movimento concretista, Torquato Neto funcionava como um disseminador de ideias entre os diferentes polos.

No final dos anos 60 viu-se obrigado a sair do país. A ditadura cada vez mais extremista empurrava para o exílio as melhores cabeças do país. Torquato Neto andou por Londres e Estados Unidos até retornar ao Brasil, no início dos anos 70. Cada vez mais isolado - de um lado a ditadura, e do outro, a patrulha ideológica esquerdista - acabou rompendo com a maioria daqueles que considerava seus amigos.

Um dia depois do seu aniversário de 28 anos, Torquato Neto cometeu suicídio. Após voltar de uma festa, deixou a mulher dormindo no quarto, ligou o gás da cozinha e trancou-se no banheiro. No dia seguinte, foi encontrado morto, trazendo consigo um bilhete onde se lia: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar". Thiago era o seu filho de três anos de idade.


Cogito
 
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos segredos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim




Nenhuma Dor
 
Minha namorada tem segredos
Tem nos olhos mil brinquedos
De magoar o meu amor

Minha namorada muito amada
Não entende quase nada
Nunca vem de madrugada
Procurar por onde estou

É preciso, ó doce namorada
Seguirmos firmes na estrada
Que leva a nenhuma dor

Minha doce e triste namorada
Minha amada idolatrada
Salve-salve o nosso amor


Let´s Play That
 
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let´s play that


Vida e obra de Torquato Neto: www.torquatoneto.com.br

Torquato Neto por Jards Macalé e Paulo José
  

sábado, 28 de maio de 2011

Belchior, onde anda você?



Belchior, meu velho, por onde você anda? Ainda estaria no interior do Uruguai, vivendo como um ermitão numa cabana em San Gregorio de Polanco? Ou tirou seu indefectível bigode e hoje vive irreconhecível entre nós? Seja lá onde quer que esteja, seu talento faz falta. Mas que volte logo. Como você mesmo disse, "Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa / E nessas ilhas cheias de distância / O meu blusão de couro se estragou..."


À palo seco

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português
 
Tenho 25 anos de sonho, de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
 
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Eu quero é que esse canto torto feito faca
Corte a carne de vocês


Belchior e Los Hermanos - Programa Altas Horas

OS DEDOS DO TEMPO


Distraidamente, meus olhos percorriam a silhueta de uma pequena árvore que dançava ao sabor do vento no outro lado da rua. Enquanto isso, a comida esfriava no fundo prato. Voltei para o meu almoço. Já eram quase duas da tarde.

No interior do restaurante, poucas mesas encontravam-se ocupadas naquele horário. Não muito longe do lugar onde me encontrava, um homem sentou-se, acompanhado por um garoto que devia ter no máximo dez anos de idade. Seu rosto me pareceu familiar e logo emergiram da memória imagens que o retratavam em outras épocas.

Num cálculo rápido, cheguei a conclusão de que almoçava naquele mesmo lugar há quase doze anos, e já nos primeiros anos havia me deparado com aquele homem. Lembro que na época ele não passava de um jovem cabeludo, a barba por fazer, um pouco acima do peso, meio desajeitado, de bermudão e tênis all star. E tinha também a namorada, de cachos vermelhos e pele excessivamente branca, sempre metida dentro de algum vestido ou saia que remetesse ao movimento hippie.

Não demorou muito para que ela aparecesse grávida, a barriga proeminente a cada dia decorrido. Poucos meses depois, lá apareciam segurando um cesto, onde repousava alheio a qualquer tumulto o filho do casal. E ainda me lembro desse menino regulando uns quatro, cinco anos de idade. Tinha a pele de um moreno claro e os cabelos cacheados. Não era feio, pode-se dizer. A natureza havia sido generosa com o casal.

Entre uma garfada e outra, observava os movimentos de pai e filho. O menino crescera e tinha a mesma fisionomia viva e os cabelos maiores e mais cacheados. O pai agora usava o cabelo curto, mas a bermuda e o all star ainda continuavam lá. Percebi que despontavam alguns fios brancos em sua barba. Mas e a mãe, por onde andava? Teriam se separado, ou alguma tragédia havia atingido aquela simpática família? Por Deus, tomara que não! – pensei. Vi que o menino sorria, um bom sinal. Acredito que tudo corria bem.

Minha dúvida se desfez quando uma mulher de cabelos vermelhos se aproximou dos dois. Usava um vestido branco, bem discreto se comparado às saias coloridas que um dia vestiu. Talvez ainda as guarde como recordação, e é bem capaz que ainda as use, já que fisicamente ainda cultivava o mesmo corpo de dez, onze anos atrás.

Já perto do fim do almoço, parei um pouco e sorrateiramente observei os três. De fato o velho Leon Tolstói estava certo ao dizer certa vez que “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”. Olhei para fora e percebi que a pequena árvore não dançava mais.

Por fim me levantei. Ao dar os primeiros passos, senti que uma brisa gelada tocava meu rosto. Ou foi só uma impressão passageira? Definitivamente não. Aquele era o tato frio dos dedos do tempo.

(Glauber Ramos)

* * *

Goiânia, 28 de maio de 2011.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

BETSY

Um conto de Rubem Fonseca


O escritor norte-americano Ernest Hemingway ao lado de um dos muitos gatos que criava, algo em torno de 50 bichanos. Ainda hoje, em sua antiga casa na ilha de Key West, Flórida, hoje transformada em museu, vivem inúmeros felinos da espécie, descendentes dos primeiros gatos que ali chegaram.

BETSY

Betsy esperou a volta do homem para morrer.

Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água.

O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta.

A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.

De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste.

Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.

Rubem Fonseca: de seu livro "Histórias de amor" (contos), editado por Cia. das Letras - São Paulo, 1997, pág. 09, extraímos o texto acima.


Conto extraído do site Releituras.

Fragmentos de uma (pseudo) carreira jornalística

Relembrando certa época da minha vida em que eu exercia o mister de colunista de jornal, escrevendo para o democrático Diário da Manhã, tradicional periódico do Estado de Goiás. Quem sabe relendo alguns desses artigos, eu ressuscite o "formador de opinião" que um dia existiu em mim. E antes que me perguntem, não sou formado em Jornalismo, mas sim em Direito.





Ouvindo:

Moacir Santos - Jequié by Quintal Velho

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Dialogando com o Mestre


Deveria dizer-me envergonhado por ainda não ter adentrado a obra do mestre libanês Gibran Khalil Gibran. Mas não irei fazê-lo. Humildemente, vou tomando contato com seus escritos, deixando-me envolver pela atmosfera mística da sua obra singular, profundamente voltada para as reflexões existenciais que tanto nos perturbam.

Nascido no Líbano em 1883, Khalil Gibran mudou-se para Nova Iorque em 1910, onde permaneceria até o ano de sua morte, em 1931. Além de escritor, pode-se dizer que ele atingiu o mesmo grau de perfeição no exercício da pintura. Pertencente à Igreja Ortodoxa, Khalil Gibran conquistou admiradores entre os mais diferentes credos. Consta que na cerimônia do seu funeral, compareceram líderes católicos, muçulmanos, protestantes, judeus, ortodoxos e maronitas, entre outros.

Para os povos do Médio Oriente, ele é o Profeta, o “Amado Mestre”. Sobre o seu túmulo, localizado numa gruta do Mosteiro de Mar Carkis, em Bsharri, no Líbano, lê-se a singela inscrição: “Aqui, entre nós, dorme Gibran”.

Ontem, após ler um texto seu intitulado “O Poeta”, do livro "Os Temporais",  atrevi-me a rascunhar um poema, que por falta de criatividade recebeu o nome “Olhar Estrangeiro”:

Olhar estrangeiro

Alheio à paisagem circundante
Um homem caminha por entre
Labirintos de solidão

Cada vida que atravessa a avenida
Nesta manhã nublada
É uma ilha inexplorada

Alheio aos transeuntes naufragados
Em sua própria existência
Um homem caminha indiferente
À sua inerente condição de ilha

Quiçá ele fosse mais que um promontório
Um continente inteiro de forças
Adormecidas

Todavia,
Alheio à sua condição de náufrago
Aquele homem relutante se sente
Feito um estrangeiro dentro da própria vida

(Glauber Ramos)


O Poeta
do livro "Os Temporais"

Sou um estrangeiro neste mundo.
            
Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.
            
Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz. Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.
            
Sou um estrangeiro para o meu corpo. Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.
            
Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem gritando: “Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude.” Fujo deles. Mas encontro outro grupo de moças que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: “É surdo como a pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo.” Deixo-as correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: “É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua.” Fujo deles com medo. E encontro um grupo de anciãos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: “É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros.”
            
Sou um estrangeiro neste mundo.
            
Sou um estrangeiro e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.
            
Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos. Se sair à luz, a sombra de meu corpo me segue, e as sombras de minha alma me precedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo. E quando chega a noite, volto para a casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.
            
Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis. À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda resposta um sorriso. Quando procuro segura-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.
            
Sou um estrangeiro neste mundo.
            
Sou um estrangeiro e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma de minha alma...
            
Caminho na selva inabitada e vejo os rios correrem e subirem do fundo dos vales ao cume das montanhas. E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas.
            
E as aves do céu voam, pousam, cantam, gorgeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelos soltos e pescoços esticados. E olham para mim com paixão e sorriem com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.
            
Sou um estrangeiro neste mundo.
            
Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria.

(Gibran Khalil Gibran)

Toca, Raul!

Fotografia de Henri Cartier-Bresson
Quando você crescer

O que que você quer ser quando você crescer?
Aguma coisa importante
Um cara muito brilhante
Quando você crescer

Não adianta, perguntas não valem nada
É sempre a mesma jogada
Um emprego e uma namorada
Quando você crescer

E cada vez é mais difícil de vencer
Pra quem nasceu pra perder
Pra quem não é importante
É bem melhor
Sonhar do que conseguir
Ficar em vez de partir
Melhor uma esposa ao invés de uma amante

Uma casinha, um carro à prestação
Saber de cor a lição
Que no bar não se cospe no chão, nego
Quando você crescer

Alguns amigos da mesma repartição
Durante o fim de semana
Se vai mais tarde pra cama
Quando você crescer

E no subúrbio com flores na sua janela
Você sorri para ela
E dando um beijo lhe diz:
Felicidade
É uma casa pequenina
É amar uma menina
E não ligar pro que se diz

Belo casal que paga as contas direito
Bem comportado no leito
Mesmo que doa no peito
Sim
Quando você crescer

E o futebol te faz pensar que no jogo
Você é muito importante
Pois o gol é o seu grande instante
Quando você crescer

O cafezinho, mostrar o filho pra vó
Sentindo o apoio dos pais
Achando que não está só
Quando você crescer
Quando você crescer
Quando você crescer

Tudo igual, vai ser exatamente o mesmo

Raul Seixas

04.Quando Você Crescer by Quintal Velho

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O dia em que Londres parou


Imagine que você está caminhando pelas ruas em um dia normal. Inesperadamente, uma música vinda de um lugar desconhecido começa a invadir o ambiente. Você logo reconhece a música e a voz daqueles que a entoam. E se eles são os Beatles, certamente você vai parar para ouvi-los.

Tal fato se deu no dia 30 de janeiro de 1969. No telhado do prédio da gravadora Apple, foi montado um palco onde realizou-se aquele que seria o último show ao vivo do Quarteto de Liverpool, o Apple Rooftop Concert.

Com a confusão instalada nas ruas, não demorou muito para que a famosa Scotland Yard, a guarda metropolitana londrina, aparecesse. Totalmente desprovidos de senso de humor, fizeram com que os Beatles parassem de tocar e deixassem o local. Na ocasião, Paul McCartney afirmou que teria sido um grande desfecho se eles tivessem sido presos. Mas isso não seria preciso, caro Paul. Não há grades capazes de deter a força e a beleza de certas canções.
Parte 1

Parte 2

Parte 3

DORES DO MUNDO


Levantou-se sem alarde. Sentiu que a manhã corroía menos que o de costume. Ah, a velha faca encravada que teima em não matar. Pouco a pouco, a ferrugem se dissolvendo em seu sangue, trazendo à boca o sabor antigo e rançoso do que não foi. A vida.

Na capa do disco, a imagem de uma árvore frondosa em meio a um entardecer de inverno, ali brotando erma de sentidos no coração daquela solidão de limpas planícies. Aquele era seu paraíso secreto, a paisagem íntima que cada criatura guarda em si, onde sonhos e realidades se misturam num amálgama indivisível.

E qual o significado de estar ali? E todas as sensações e criaturas que permeavam o ambiente, para onde iam? Viviam?

"E tu,
que bebeste pouco,
não choraste no enterro do irmão,
não gozaste teus vinte anos.

Agora olhas para trás,
muito percorrestes,
é tarde demais.
Venderias a alma?
Tens uma alma?
Ou somente um velho corpo
tingido de cicatrizes?”

Auscultar-se-ia. No peito, um pulsar longínquo que parecia perder sua força como a voz que se esvai em ecos no interior de uma caverna.

E dormiu. Em sonho, borboletas azuis dançavam-lhe na face, enquanto repousava sob as sombras de uma árvore colossal, tão antiga quanto o tempo.

* * *
Goiânia, 15 de novembro de 2006. Revisado em 25 de maio de 2011.

sábado, 21 de maio de 2011

Rumo a Sampa

Alguma coisa acontece no meu coração...

De partida rumo à capital paulista, razão pela qual este blog ficará alguns dias sem ser atualizado. Aproveitando a ocasião, trago à baila aquela bela música do Caetano, que traduz tão bem o sentimento daqueles que se defrontam pela primeira vez com a aridez da maior cidade do Brasil.

Até a volta!


Sampa

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee, a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi
De mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende de pressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Panaméricas de áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo Quilombo de Zumbi
E novos baianos passeiam na tua garoa
E os novos baianos te podem curtir numa boa.


terça-feira, 17 de maio de 2011

Dentro do mesmo time

Chico Buarque e Bob Marley - Rio, março de 1980


Há exatos 30 anos (mais precisamente em 11 de maio de 1981), o rei do reggae Robert "Bob" Nesta Marley nos deixou. A sua música, porém, é fonte inesgotável de influências para novas gerações, não só pelas batidas marcantes do reggae, mas sobretudo pelas mensagens que conseguiu transmitir através de suas letras, de forte cunho social e pacifista.

Em março de 1980, Bob Marley fez sua única visita ao Brasil. Chegando aqui, foi reverenciado por gente como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Toquinho e Chico Buarque. Chegou a jogar futebol com este último, dentro do mesmo time. Assim como ensaiaram uma vez Pelé e Maradona em um programa de tv argentino, em que os dois trocaram bolas entre si por alguns minutos, nos dando a sensação de que a bola jamais cairia, Bob Marley e Chico Buarque juntos também nos transmitem uma sensação semelhante: a de que a obra dos gênios, por mais que o tempo passe, jamais fenecerá como a sombra dos homens.

Redemption Song (Canção de Redenção)

Velhos piratas, sim, eles me roubaram,
Me venderam para navios mercantes
Minutos depois deles terem me tirado
De um buraco menos profundo
Mas minha mão foi fortalecida,
Pela mão do todo poderoso
Nós avançamos nessa geração
Triunfantemente!

Você não irá ajudar-me a cantar,
Essas canções de liberdade?
Porque tudo o que eu sempre tive são:
Canções de redenção
Canções de redenção

Liberte-se da escravidão mental,
Ninguém além de nós pode libertar nossas mentes
Não tenha medo da energia atômica,
Porque eles não podem parar o tempo
Por quanto tempo vão matar nossos profetas?
Enquanto nós permaneceremos de lado olhando
Alguns dizem que é apenas uma parte disto
Nós temos que cumprir inteiramente o Livro

Você não irá ajudar-me a cantar,
Essas canções de liberdade?
Porque tudo o que eu sempre tive são:
Canções de redenção
Canções de redenção
Canções de redenção




Redemption song

One love


Stir it up

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Cuba de Pedro Juan Gutiérrez


O escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez diz abominar a política, embora sua obra esteja impregnada pelo denuncismo social. Ao contrário de outros escritores que fugiram do regime castrista, Gutiérrez não abandonou a ilha de Fidel. Mas o preço a se pagar por essa decisão é deveras pesado. Ele jamais teve um livro seu lançado em seu país natal, embora sua obra já tenha sido publicada em mais de 20 países.

Dono de um estilo ágil e enxuto que desenvolveu em seus anos como jornalista, Pedro Juan Gutiérrez expõe sem piedade as mazelas da vida cubana. Do alto do 8º andar do prédio decadente em que vive, ele absorve a crua realidade de um país que muitas vezes é retratado como a síntese do sonho comunista que vingou. Caminhando pelas ruas melancólicas de Havana, Gutiérrez se mistura aos mais diferentes tipos que compõem a paisagem social da capital cubana – bêbados, viciados, curandeiros, prostitutas, biscates, turistas e travestis – a ponto dele próprio converter-se em personagem de suas histórias, conforme escancarado em seu livro de contos O insaciável homem aranha, de conteúdo altamente biográfico.

 Vendedor de sorvetes, cortador de cana, pintor, jornalista, escritor, essas são algumas das profissões que Pedro Juan Gutiérrez exerceu ao longo da sua vida. É bem provável que uma hora dessas ele esteja em sua janela contemplando a vida daquelas pobres pessoas, lançadas à própria sorte. Ou talvez esteja em alguma mesa de bar, bebendo rum barato e acendendo um charuto. Ou ainda tenha saído no encalço de alguma bela mulata, como gosta de fazer um certo escritor que muitas vezes aparece em suas histórias.

Para quem se interessou por sua obra, Pedro Juan Gutiérrez lançou os seguintes livros:
  • Trilogia Suja de Havana (1998)
  • O Rei de Havana (1999)
  • Animal Tropical (2000)
  • O Insaciável Homem-aranha (2002)
  • Carne de cão (2003)
  • Nosso GG em Havana (2004)
  • O Ninho da Serpente: Memórias do Filho do Sorveteiro (2005)
  • Coração Mestiço (2007)
 Site do escritor: www.pedrojuangutierrez.com


O Rei de Havana (trecho)

AQUELE pedaço de cobertura era o mais porco do edifício inteiro. Quando começou a crise de 1990, ela perdeu o emprego de faxineira. Então fez como muita gente: arranjou galinhas, um porco e umas pombas. Construiu uma gaiola de tábuas podres, pedaços de lata, sobras de barras de aço, arames. Comiam alguns e vendiam outros. Sobrevivia no meio da merda e do fedor dos bichos. Às vezes, o edifício chegava a não ter água durante vários dias. Então, vociferava com os meninos, acordava os dois de madrugada, e com tapas e empurrões os obrigava a descer os quatro andares e subir pela escada uns tantos baldes, tirados de um poço que inacreditavelmente existia na esquina, coberto com uma tampa de esgoto.


   Os meninos tinham então nove e dez anos. Reynaldo, o menor, era tranqüilo e silencioso. Nelson, mais fogoso, se rebelava sempre e às vezes gritava com ela, enfurecido:

   - Não grite mais comigo, porra! O que é que você quer?

   Ela era manca da perna direita e um pouco limítrofe ou tonta. Não era boa da cabeça. Desde menina. Talvez de nascença. Sua mãe vivia junto com eles. Tinha uns cem anos, ou mais, ninguém sabia. Todos num quarto em ruínas de três por quatro, e um pedaço de pátio ao ar livre. A velha não tomava banho fazia anos. Muito magra de tanta fome. Uma longa vida de fome e miséria permanente. Já estava cascuda. Não falava. Parecia uma múmia silenciosa, esquelética, coberta de sujeira. Mexia-se pouco ou nada. Sem falar jamais. Só olhava a filha meio tonta e os dois netos que se estapeavam e se ofendiam mutuamente em meio ao cacarejar das galinhas e ao latir dos cachorros. "Esses aí são loucos", diziam os vizinhos. E ninguém intervinha naquelas brigas contínuas.

   Às vezes, acendia um cigarro e se recostava na varanda da cobertura, olhando a rua, pensando em Adalberto. Quando jovem, teve dezenas de homens. Gostava de excitá-los. De qualquer idade. Alguns lhe diziam: "Olha, boba, venha aqui e me dê uma chupadinha. Dou dois pesos se me der uma chupada", e lá ia ela: chupar. Alguns lhe davam dinheiro. Outros não. Soltavam a porra e diziam: "Espere aqui, não saia daqui que eu já volto", e sumiam. Com Adalberto foi diferente. Os meninos são dele, mas o desgraçado nunca quis viver com eles ali na cobertura, e quando viu que estava grávida pela segunda vez, desapareceu para sempre. Agora já está meio velhusca, songa, fedendo demais, manca de uma perna, morrendo de fome. Pensava lá consigo mesma e concluía: "Quem, porra, vai chegar perto de mim? Se o que eu tenho é vontade de morrer". Pensava assim e se enfurecia consigo mesma. Jogava o cigarro na rua e, desesperada, gritava com os meninos:

   - Rey, Nelson, vão buscar água lá embaaaaixo! Caralho, vão buscar águaaaaa!

   Os meninos obedeciam. Contra a vontade, mas obedeciam. Pelo menos já não prendia mais os dois no armário escuro e pequeno durante dias. Desde muito pequenos, até completarem sete anos, enfiava os dois naquele lugar úmido, cheio de encanamentos e baratas. Sem razão. Só para tirar da sua frente. Os meninos ficavam apavorados porque quando entravam na prisão podiam passar um, dois ou até três dias sem comer, lambendo a umidade dos canos. Outras vezes, atirava-os dentro de um tanque de água, de repente, gritando para se calarem e não encherem mais. De susto, os meninos se calavam. Às vezes, os afundava na água e não os tirava até que, meio asfixiados, esperneavam, desesperados. Agora, maiores e mais fortes, rebelavam-se e impediam aqueles castigos. Viviam soltos, embora fossem às vezes à escola, na esquina da San Lázaro com a Belascoaín. Mais para fugir dela do que para aprender. Os professores ensinavam pouco porque os alunos eram rebotalho. As menininhas de treze anos já estavam trepando a pleno vapor com os turistas do Malecón. Os meninos, metidos com maconha e fazendo uns negocinhos, para ganhar algum todo dia. Os pais e mães se satisfaziam com sua ausência. Ninguém estava interessado em aprender matemática, nem coisas complicadas e inúteis. E os professores não conseguiam mais dominar aquelas ferinhas. Enfim, Nelson e Rey iam à escola três ou quatro dias e o resto da semana se distraíam na cobertura, com os pombos e os cachorros. Tinham cinco cachorros recolhidos da rua.

   Muitas vezes, a única comida do dia inteiro era um pedaço de pão e uma jarra de água com açúcar, mas mesmo assim os dois cresceram. Descobriram que as pombas dos outros vinham pousar ali na cobertura deles, e que não era difícil caçá-las vivas. Então, inventaram uma armadilha: um pombo bonito, macho e sedutor, que voava por cima de todos os edifícios. Sempre aparecia alguma pombinha incauta, admiradora daquele belo galã. E lá ia ela. Voava atrás dele e o pombo a conduzia até sua gaiola para lhe fazer amor à vontade. E aí: zás. Rey e Nelson fechavam a porta da gaiola. No mercado de Cuatro Caminos pagavam quarenta ou cinqüenta pesos pela pomba. Até cem pesos, se fosse branca. Com a crise e a fome e a loucura de ir embora do país, todo mundo fazia trabalhos de candomblé, e as pombas, cabritos e galos alcançavam bom preço. As galinhas pretas também, que são muito boas para limpeza e abrir caminhos. Quando os meninos vendiam uma pomba a coisa melhorava: comiam umas pizzas e tomavam uma vitamina de frutas. Levavam pizzas para a mãe e para a avó.

   Mesmo assim, ela continuava gritando sempre com eles, como uma louca. Vociferando, humilhando-os. Os dois já tinham pentelhos na pélvis e no cu, o pau já havia crescido e engrossado, tinham pêlos nas axilas e aquele cheiro de suor forte dos homens, e a voz um pouco mais rouca e grossa. Se masturbavam, escondidos no meio das gaiolas dos frangos, olhando a menina vizinha da cobertura ao lado. Na realidade, era a mesma cobertura do edifício, mas anos antes alguém a dividira ao meio com um muro baixo, de menos de um metro. Essa era a fronteira com os vizinhos: uma velha gorda e peituda com uma filha de uns vinte anos e muitos outros filhos que viviam por ali e jamais se lembravam de que ela era mãe deles. A menina era gostosa demais: mulata magra, linda, putinha. Só saía de noite, elegante, provocante, e voltava de madrugada. Durante o dia, andava pelo seu pedaço de cobertura com um short curtinho e justo e uma blusinha mínima, sem sutiã, com os bicos dos peitos bem marcados, e ahhh. Uma tentação. Reynaldo tinha já treze anos e Nelson catorze. Tinham largado a escola fazia tempo. Não agüentavam mais continuar sempre na sétima série. Repetiram três vezes a mesma série, até que desistiram.

   Consideravam-se homens. Continuavam com o negócio das pombas. Cada dia eram melhores roubando pombas e todo dia vendiam uma ou duas. Era um bom negócio. Eram homens e já sustentavam todos em casa. Mas a mãe continuava estúpida como sempre. Odiavam aquelas explosões e aqueles pitos na frente de todo mundo. Se sentiam humilhados e respondiam:

   - Não seja besta! Cale a boca, porra, cale a boca!

   A cobertura cada dia ficava mais porca, fedendo mais a merda de animais. A avó quase não se mexia. Sentava-se num caixote meio podre, ou em qualquer canto. E ficava horas debaixo do sol. Tinham de enfiá-la no quarto e deitá-la. Parecia uma morta-viva. Tinham também de controlar a mãe, porque a cada dia ficava mais maluca. Já nem conseguia mais descer a escada. Eles a empurravam e gritavam para que se calasse, mas ela berrava mais ainda, pegava um pedaço de pau e mandava em cima deles, tentando defender seu território. Eles arrancavam o pau da mão dela e a controlavam com uns bofetões na cara. Ela chorava de raiva, gritando, soluçava, acendia um cigarro no beiral da cobertura, olhando os carros, as bicicletas e as pessoas que passavam por San Lázaro. Já nem se lembrava de Adalberto.

   Uma manhã, por volta da onze, estava fumando e olhando a rua. Nelson tinha lhe dado um bofetão duro na boca, e estava com o lábio superior inchado e cortado por dentro. Passava a língua e sentia o gosto ferroso do sangue. Estava furiosa. Jogou a bituca na rua, deu uma cuspida meio sanguinolenta, querendo que caísse na cabeça de alguém, e se virou para entrar no quarto. O sol estava forte demais e lhe doía a cabeça. Os meninos, escondidos atrás do galinheiro, espiavam a putinha da vizinha. Os dois de olhos entrecerrados, sonhadores, mexendo ritmicamente no pau. A mulatinha estava meio nua, estendendo uma toalha e uma calcinha vermelha, de renda. Gostava que os meninos se masturbassem olhando para ela. A toalha pingava água e ela torcia e se molhava para se refrescar, debaixo do sol. Na verdade, gostaria de vê-los de corpo inteiro, frenéticos na frente dela, batendo a sua punheta, mas ainda eram meninos demais para se atrever a tanto. Quando crescessem um pouco mais seriam bons "atiradores" e exibiriam os paus nos portões do Malecón para todas que quisessem ver. Por ora, faziam escondido.

   Quando ela viu aquele espetáculo, ficou ainda mais queimada. Empinou de raiva:
- Vão batendo punheta! Vão batendo punheta! Descarados, vão acabar morrendo, fora daí! Os dois! Fora daí!

   Pegou um pau para bater neles, mas logo se virou para a vizinha provocante:

   - E você, puta de merda, faz isso só pra foder, porque é uma puta. Não provoque mais, senão eles acabam morrendo. Sem comer e tocando punheta o dia inteiro! Vai matar eles, droga de puta! Vai matar eles!

   - Escura aqui, tonta, não me amole, eu estou na minha casa e faço o que eu bem entendo.

   - Você é uma bela de uma puta.

   - Sou, mas com a minha boceta. E vivo vinte vezes melhor que você, que é tonta e imunda. Sua porca!

   Os cachorros começaram a latir e as galinhas também se alvoroçaram. No meio de tanto barulho e tanta loucura, ela tenta saltar o pequeno muro que separa as coberturas, com o pau na mão, querendo bater na vizinhinha, mas Nelson já está em cima dela e lhe tira o pau da mão. Furiosa, tenta passar de qualquer jeito para o pátio vizinho, gritando:

   - Você é uma puta! E você um punheteiro! Tira a mão de cima de mim. Me solta, punheteiro de merda.

   - Não me xingue mais, porra, não me xingue mais!

   Nelson está fora de si, descontrolado. É um homem de catorze anos, e lhe dói aquela humilhação. E ainda por cima, as gargalhadas gozadoras da vizinhinha, que agora provoca ainda mais:

   - Vai, punheteiro, descarado, vai ficar maluco com tanta punheta! Vai arrumar uma mulher.

   E dá a volta e entra em casa, muito tranqüila, requebrando a bunda para um lado e outro. No meio da briga, a gozação da putinha o machuca ainda mais. Dá um forte empurrão na mãe e a joga de costas contra o galinheiro. De um canto da gaiola, projeta-se uma ponta de cabo de aço que se crava em sua nuca até o cérebro. A mulher nem grita. Abre os olhos com horror, leva as mãos ao ponto onde entrou o aço. E morre apavorada. Em segundos, forma-se uma poça de sangue grosso e de líquidos viscosos. Ela morre com os olhos abertos, horrorizada. Nelson vê aquilo e de repente desaparece o ódio que sente pela mãe. É inundado de dor e de pânico.

   - Ai, minha mãe! O que foi que eu fiz, o que foi isso?

   Agarra a mãe, tentando levantá-la, mas não consegue. Está espetada pela nuca na ponta do cabo de aço.

   - Eu matei ela, matei ela!

   Gritando como um louco, sai correndo pelo beiral da cobertura e se atira na rua. Não sente o estrépito do seu crânio ao se arrebentar no asfalto quatro andares abaixo. Morreu igual à mãe, com uma expressão veemente de crispação e de terror.

   A avozinha viu aquilo tudo sem se mexer de seu lugar, sentada num caixote de madeira podre. Sem fazer nem um gesto, fechou os olhos. Não podia viver mais. Já era demais. O coração dela parou. Caiu para trás e ficou recostada na parede, impávida como uma múmia.

   Rey não havia saído de seu esconderijo atrás do galinheiro. Foi tudo rapidíssimo e ainda estava com o pinto duro feito um pau. Guardou-o como pode e colocou-o entre as coxas para prendê-lo e não fazer volume, até baixar sozinho. Ficou sem fala. Foi até o beiral da cobertura e olhou. Lá estava seu irmão, estatelado no meio da rua, rodeado de gente, de policiais, o tráfego parado de um lado e outro da San Lázaro.

   Num instante os policiais chegaram na cobertura. Vinham belicosos:

   - O que aconteceu aqui?

   Rey não conseguiu responder. Encolheu os ombros e se pôs a sorrir para os policiais. Os sujeitos ficaram boquiabertos:

   - E você ainda ri? O que foi que você fez? Vamos lá, diga aí. O que foi que você fez?
Riu de novo, tinha a mente em branco, mas afinal conseguiu dizer:

   - Nada, nada. Eu não sei.

   - Como não sabe? O você fez?

   - Nada. Eu não sei.

   Foi algemado. Levado pela escada. Empurrado para dentro da radiopatrulha até a delegacia de polícia, a umas quadras dali. Foi preso numa cela, no porão, junto com três delinqüentes. E ali ficou. Sem pensar em nada, modorrento.

   Os técnicos de criminalística demoraram três horas para chegar a San Lázaro. Trabalharam escrupulosamente a tarde toda. Levantaram o cadáver de Nelson às cinco horas e o levaram para o necrotério, junto com o da avó. Com ela demoraram um pouco mais. Já era de noite quando resolveram desenganchá-la do cabo de aço e mandá-la para o necrotério. Era evidente que alguém havia empurrado violentamente o rapaz da cobertura e a mulher, de costas, contra o galinheiro. A velhinha morreu de uma parada cardíaca, sem violência. Só que não havia testemunhas. Ninguém viu nada. É sempre a mesma coisa nesse bairro. Ninguém vê nada. Jamais uma testemunha.
(...)

Regressou lentamente. Não tinha pressa. Gostava de andar de madrugada, de vagabundear sem rumo. Era melhor esquecer o cemitério. Além disso, era trabalho demais por vinte pesos. Chegou muito cedo ao edifício. Subiu a escada. Bateu na porta de Magda. Ela abriu, sonolenta.

   -Ah, até que enfim você apareceu.

   -O mesmo digo eu.

   Magda se atirou na enxerga de novo. E ele ao lado dela. Dormiram no mesmo instante. Quando acordaram passava do meio dia. Como sempre, ele acordou com uma ereção fenomenal. Magda estendeu a mão. Apalpou, ainda meio adormecida. Apertou. Ele pôs a mão no sexo dela. E sem abrir os olhos se acariciaram. Ele chegou mais perto. Essa era Magda. Com cheiro de sujeira, igual a ele. Lambeu seu pescoço. Cheirou suas axilas fétidas. Isso o excitava muito. Subiu em cima dela, penetrou-a, e se sentiu muito bem. Realmente bem. Seria amor? Não se lembrou da bebadinha da noite anterior. Nem de Sandra. Treparam com profundidade, quer dizer, sentindo o que faziam. Depois do primeiro orgasmo, continuaram, ficaram um pouco mais frenéticos. Ah, que bom.

   - Gosta de mim, titi?

   - Gosto, papito, como gosto...como me sinto bem com você.

   Os dois corpos unidos se comunicavam aos sussurros, com pequenas frases de amor. Se acariciavam, se desejavam com cada pedacinho dos sentidos. Depois, quando esfriava a sensualidade, dava pena sentir tanto amor. A sutileza do amor é um luxo. Desfrutá-lo é um excesso impróprio dos estóicos.

   Levantaram-se da enxerga às três da tarde. Magda lhe ofereceu rum. Restava um pouco numa garrafa.

   - Não. Estou com fome.

   - Nem comida, nem café, nem cigarro. Não tem nada. Rum e mais nada.

   - Você é um desastre.

   - Você é mais desastre que eu, Rey. Se eu não arrumo grana, a gente morre de fome.

   - Bom, vá, se manda. Arrume algum.

   - Espere um pouco, chino, tenho um dinheirinho aqui.

   - Dos velhos?

   - De qualquer coisa, neném. Não comece com essa encheção. Já disse cinquënta vezes que os velhos dão mais dinheiro que o amendoim. Vamos pra rua, procurar alguma coisa pra comer.

   - Não. Eu fico. Você traz. E não demore.

   - Você é o maior mimado do mundo. Rei de Havana não. O Mimado de Havana!

©Pedro Juan Gutiérrez