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Velho Ano Novo

 


Não sei ao certo quando começou essa conversa de que a vida recomeça a cada ano. Para mim, ela parece mais um rio teimoso, que segue no mesmo curso, ora estreito, ora largo, mas sempre indo. Não que eu despreze o ritual das promessas, a contagem regressiva, o champanhe barato. Já acreditei nisso um dia, como se o relógio marcasse zero hora e a vida, de repente, abrisse uma porta nova. Hoje, penso que o rio não se importa muito com essas ilusões.

Os anos se empilham como as revistas antigas no fundo do armário. E o que fiz de concreto, afinal? Poderia dizer que não plantei árvores, nem escrevi livros importantes, nem mesmo eduquei filhos — uma biografia que não impressionaria ninguém. Mas houve planos, claro. Sempre há. Uma promoção no trabalho que não veio, um amor que escorregou pelas mãos vacilantes, viagens que ficaram nos mapas rabiscados. Não me tornei melhor nem pior, apenas continuei.

Se há uma certa melancolia nisso... penso que sim. A ausência de grandes conquistas, como imaginei que teria, talvez tenha deixado espaço para outras coisas. Coisas pequenas, sim, mas que ocupam o silêncio de maneira gentil. O canto tímido do sabiá repousado no chafariz da praça. A xícara de café que aquece a ponta dos dedos numa manhã fria. A velha poltrona junto à janela, onde aprendi a gostar de estar só, de um jeito que antes me aterrorizava.

A verdade é que, mesmo se tivesse alcançado as tais conquistas, o mundo não mudaria muito. Teria sido promovido e, quem sabe, comprado um carro novo; mas ainda assim, o trânsito seria o mesmo. Teria casado com ela e, provavelmente, discutido sobre contas de luz, preço do material escolar e cardápios de domingo. A paz que procuro hoje não viria das metas alcançadas. Foi preciso abrir mão delas para entender isso.

O ano novo se aproxima outra vez. Da sacada, vejo os fogos de artifício desenhando suas flores no céu. Lá embaixo, as pessoas aplaudem, sorriem, bebem, se abraçam. Eu apenas observo. Há algo bonito nesse entusiasmo, mesmo que eu não o compartilhe. Não faço promessas, não traço metas. Apenas sigo o meu curso, como um rio vagaroso, profundo.

A solidão não é má companhia. Não a solidão de quem foi abandonado, mas a de quem encontrou, na quietude, um tipo estranho de conforto. Talvez eu devesse brindar a isso. Ou não. Amanhã, a vida será a mesma. E está tudo bem assim.

* * *

Gurupi-TO, 28 dez 2024

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