Era uma tarde modorrenta, dessas que parecem se equilibrar precariamente entre o tédio e o assombro. Na rua, um cachorro sem dono perseguia sua própria sombra, enquanto um varal lotado de roupas balançava ao vento como bandeiras de uma revolução esquecida. Os sons eram muitos: o eco metálico do martelo de um pedreiro, o motor cansado de um ônibus velho, a conversa entrecortada de duas vizinhas que discutiam o preço das verduras.
Sentei-me na varanda com uma xícara de café que já esfriava. Tudo parecia fora do lugar. Uma folha amarelada caiu da mangueira do quintal, e vi nela uma espécie de poema, como se a própria árvore tivesse desistido de segurá-la. Que estranho, pensei, como as coisas mais insignificantes carregam, em seu próprio modo, uma centelha de eternidade.
Na calçada, um menino puxava o carrinho de plástico enquanto sua mãe gesticulava ao telefone. Ele ignorava o mundo, concentrado em fazer o carrinho cruzar uma poça d’água que resistia ao sol. Ali, naquela pequena cena, o caos era uma coreografia invisível: o riso infantil contra a pressa adulta, o azul do céu cortado pelos fios de eletricidade, a eternidade escondida no instante.
Lembrei-me de uma história que ouvi certa vez, sobre como os japoneses enxergam beleza nas imperfeições. O vaso rachado ganha ouro no remendo, a madeira com cicatrizes de tempo vira arte. O caos, então, não seria mais do que a vida em sua forma mais pura? Cada coisa desarrumada no mundo carrega em si uma justificativa secreta, um propósito que se revela apenas aos que olham de perto, sem pressa.
Naquela tarde, o caos me abraçou. Aceitei o som dissonante da cidade, o vento que não sabia para onde ia, a folha caída que, agora, jaz aos pés de uma criança que a transformava em barco imaginário. Tudo era tão desordenado e, ao mesmo tempo, tão infinitamente belo.
E quando a noite caiu, com sua escuridão desigual e suas estrelas tímidas, percebi que o caos, em sua dança desvairada, nos sussurra um segredo: a ordem não é a regra, mas o milagre. E o milagre, por mais efêmero que seja, é sempre belo.
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Gurupi, 31 dez 2024
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