Assim me recordo com dolorida saudade daqueles dias de infância, quando íamos visitar nossos avós maternos no interior de Goiás...
Lembro de certa manhã, onde tudo parecia de uma simplicidade desarmante. O sol vinha preguiçoso pelas frestas da janela, riscando a sala com um dourado tímido. O cheiro do café escapava da cozinha, preenchendo a casa com uma espécie de certeza: o dia começara.
Dona Irene, 82 anos, repetia seu ritual diário. Sentava-se na cadeira de palhinha, próxima ao jardim, com a Bíblia entreaberta e um rosário escorregando pelos dedos nodosos. Não rezava apenas por si, dizia. Rezava pelo mundo, pelos netos barulhentos e até pelo vizinho que nunca devolvia a mangueira emprestada. A cada conta do rosário, uma súplica ou um agradecimento.
Na rua, o carteiro caminhava lentamente. A cada portão, ele entregava cartas que ninguém mais lia com pressa. De onde estava, Dona Irene ouvia o som das dobradiças rangendo e imaginava o encontro entre a caligrafia apressada e as mãos cansadas dos destinatários. Tantas histórias seladas em envelopes; promessas de amor, cobranças frias, notícias esperançosas.
Mais ao fundo, no quintal, Seu João Benevides arrumava as ferramentas da sua minúscula marcenaria. Para ele, a perfeição não estava na fé, mas no alinhamento preciso de cada ferramenta de trabalho na prateleira, da menor para a maior, agrupadas em família. “Tudo no seu devido lugar”, dizia. Era quase uma oração: martelo com martelo, chave de fenda com chave de fenda, plaina com plaina. Quando alguém precisava de ajuda com um móvel estragado, era sempre ao velho Benevides que recorriam. Ele dizia que seu maior prazer era consertar o que parecia sem valor, um ato de amor sem palavra.
Na calçada, um menino segurando uma vara tentava alcançar a pipa enroscada no alto do pé de manga-espada. Para ela, fé era acreditar que um vento súbito viria libertar o brinquedo. Do portão, Dona Irene observava e murmurava baixinho: “Quem sabe Deus não mande um anjo?”.
O dia seguia assim, simples e previsível. Mas quem observava com atenção percebia a coreografia do cotidiano. Dona Irene rezava, Seu João Benevides consertava, a criança acreditava, e o carteiro costurava vidas com suas entregas.
No fim da tarde, quando o céu começava a ganhar tons de laranja, Dona Irene suspirou. Olhou para o céu, sorriu, e disse baixinho: “Cada um tem seu jeito de exercer a fé. Eu rezo, João conserta, e o menino sonha com o vento. Não é isso que mantém o mundo girando?”.
Então, voltava ao rosário, à sua prece. Não pelo extraordinário, mas por todos os pequenos milagres que sustentavam os dias.
Hoje não estão mais lá: meus avós, Dona Irene, Seu João Benevides... será que o carteiro ainda leva notícias para alguém? E o menino, ainda sonha com o vento, ou se transformou em um homem cético, fatigado pelas desilusões da vida?
Infelizmente não tenho respostas. Mas assim como fazia Dona Irene, ainda prefiro acreditar na força dos pequenos milagres, que na sua soma são capazes de promover grandiosas transformações na vida de quem não perdeu a fé.
* * *
Tocantins, dez 2024.
Comentários