As manhãs têm sido todas iguais, e talvez aí esteja o problema. O vento passa apressado, varrendo folhas e memórias pelas ruas, como quem quer logo sair de cena. A vida, essa velha conhecida, segue no piloto automático, num compasso que lembra as segundas-feiras: arrastada, sem promessa de novidade. Foi numa dessas que você, caro Belchior, me voltou à cabeça, como uma velha melodia que insiste em reaparecer quando o silêncio ameaça ser maior.
Lembrei de você porque anda faltando coragem por aqui. Coragem para dizer o que precisa ser dito, para olhar a vida de frente e chamá-la pelo nome. "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro", você cantava, e talvez seja disso que andamos precisando: lembrar que viver dói, mas é preciso encarar.
As ruas já não têm música. O Brasil que você desenhava, com nuances de amor e crueza, parece ter se apagado. "Meu delírio é experiência com coisas reais", mas a realidade anda pesada demais, como se as cores tivessem desbotado. Os bares, que antes guardavam vozes e violões, hoje ecoam um vazio difícil de preencher. As praças perderam os encontros e os sonhos, restando apenas as sombras.
Você tinha o poder de transformar o caos em beleza, amigo Belchior. "Apenas um rapaz latino-americano", você cantava, mas sua voz não se limitava a isso. Era mais do que um retrato: era uma bússola, um farol para quem se perdia nas angústias do dia a dia. Agora, estamos sem essa luz. Falta alguém que nos cante as dores, que nos mostre que, mesmo na dor, há um caminho a seguir. Alguém que nos lembre, com urgência, que "amar e mudar as coisas nos interessa mais".
Onde você está agora, amigo Belchior? Talvez em algum lugar tranquilo, onde o tempo flui sem pressa, onde as coisas finalmente fazem sentido. Aqui, no meio dessa bagunça, seguimos à procura das suas palavras, que tinham o dom de acalmar e, ao mesmo tempo, provocar, como um amigo que diz o que a gente não quer ouvir. O mundo está barulhento, mas é a ausência da sua voz que, hoje, mais nos pesa.
Volte, de algum jeito, quem sabe em forma de um vento suave, ou talvez de uma simples ideia que faça nossa memória acordar. Ou, se for o caso, fique onde está, mas mande um sinal, um sopro de que ainda é possível acreditar que "viver é melhor que sonhar". A gente promete cuidar das suas canções, Belchior, como quem preserva um mapa antigo, acreditando que, de algum modo, ele nos levará de volta à verdade que você sempre soube cantar.
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Gurupi-TO, 27 dez. 2024
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