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Mostrando postagens de dezembro, 2024

A Indescritível Beleza do Caos

Era uma tarde modorrenta, dessas que parecem se equilibrar precariamente entre o tédio e o assombro. Na rua, um cachorro sem dono perseguia sua própria sombra, enquanto um varal lotado de roupas balançava ao vento como bandeiras de uma revolução esquecida. Os sons eram muitos: o eco metálico do martelo de um pedreiro, o motor cansado de um ônibus velho, a conversa entrecortada de duas vizinhas que discutiam o preço das verduras. Sentei-me na varanda com uma xícara de café que já esfriava. Tudo parecia fora do lugar. Uma folha amarelada caiu da mangueira do quintal, e vi nela uma espécie de poema, como se a própria árvore tivesse desistido de segurá-la. Que estranho, pensei, como as coisas mais insignificantes carregam, em seu próprio modo, uma centelha de eternidade. Na calçada, um menino puxava o carrinho de plástico enquanto sua mãe gesticulava ao telefone. Ele ignorava o mundo, concentrado em fazer o carrinho cruzar uma poça d’água que resistia ao sol. Ali, naquela pequena cena, o c...

A Noiva de Dezembro

  Naquela manhã, como sempre ocorria em dezembro, a casa parecia segurar a respiração. Ela acordou cedo, como quem tem pressa de viver o dia mais importante da vida. O vestido branco, com suas mangas bufantes e rendas delicadas, estava cuidadosamente estendido sobre a cama. Um modelo tanto antiquado — alguns especialistas em moda poderiam dizer — mas, segundo ela, o vestido seguia à risca o desenho de um renomado estilista italiano. Em frente ao espelho, ela se arrumava com devoção. Camadas de pó delicadamente dispostas nas maçãs do rosto, a longa trança negra e brilhante, que descia da cabeça até o meio das costas, iluminada pelo sol vespertino que atravessava a janela do quarto. O casamento fora planejado para dezembro, entre o Natal e o Ano Novo. Uma escolha que, embora romântica, tinha suas razões bem práticas. Maio, o tradicional mês das noivas, era disputado demais, os preços inflacionados e a igreja ficava com a agenda lotada. Dezembro, por outro lado, era uma época em que o...

Velho Ano Novo

  Não sei ao certo quando começou essa conversa de que a vida recomeça a cada ano. Para mim, ela parece mais um rio teimoso, que segue no mesmo curso, ora estreito, ora largo, mas sempre indo. Não que eu despreze o ritual das promessas, a contagem regressiva, o champanhe barato. Já acreditei nisso um dia, como se o relógio marcasse zero hora e a vida, de repente, abrisse uma porta nova. Hoje, penso que o rio não se importa muito com essas ilusões. Os anos se empilham como as revistas antigas no fundo do armário. E o que fiz de concreto, afinal? Poderia dizer que não plantei árvores, nem escrevi livros importantes, nem mesmo eduquei filhos — uma biografia que não impressionaria ninguém. Mas houve planos, claro. Sempre há. Uma promoção no trabalho que não veio, um amor que escorregou pelas mãos vacilantes, viagens que ficaram nos mapas rabiscados. Não me tornei melhor nem pior, apenas continuei. Se há uma certa melancolia nisso... penso que sim. A ausência de grandes conquistas, como...

Evocações de Belchior

  As manhãs têm sido todas iguais, e talvez aí esteja o problema. O vento passa apressado, varrendo folhas e memórias pelas ruas, como quem quer logo sair de cena. A vida, essa velha conhecida, segue no piloto automático, num compasso que lembra as segundas-feiras: arrastada, sem promessa de novidade. Foi numa dessas que você, caro Belchior, me voltou à cabeça, como uma velha melodia que insiste em reaparecer quando o silêncio ameaça ser maior. Lembrei de você porque anda faltando coragem por aqui. Coragem para dizer o que precisa ser dito, para olhar a vida de frente e chamá-la pelo nome. "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro", você cantava, e talvez seja disso que andamos precisando: lembrar que viver dói, mas é preciso encarar. As ruas já não têm música. O Brasil que você desenhava, com nuances de amor e crueza, parece ter se apagado. "Meu delírio é experiência com coisas reais", mas a realidade anda pesada demais, como se as cores tivessem desbotado...

Exercícios de Perfeição da Fé

  Assim me recordo com dolorida saudade daqueles dias de infância, quando íamos visitar nossos avós maternos no interior de Goiás... Lembro de certa manhã, onde tudo parecia de uma simplicidade desarmante. O sol vinha preguiçoso pelas frestas da janela, riscando a sala com um dourado tímido. O cheiro do café escapava da cozinha, preenchendo a casa com uma espécie de certeza: o dia começara. Dona Irene, 82 anos, repetia seu ritual diário. Sentava-se na cadeira de palhinha, próxima ao jardim, com a Bíblia entreaberta e um rosário escorregando pelos dedos nodosos. Não rezava apenas por si, dizia. Rezava pelo mundo, pelos netos barulhentos e até pelo vizinho que nunca devolvia a mangueira emprestada. A cada conta do rosário, uma súplica ou um agradecimento. Na rua, o carteiro caminhava lentamente. A cada portão, ele entregava cartas que ninguém mais lia com pressa. De onde estava, Dona Irene ouvia o som das dobradiças rangendo e imaginava o encontro entre a caligrafia apressada e as mã...