terça-feira, 15 de março de 2011

O BOXEADOR

 
O voo dela partiria às sete da manhã. Já passava das onze da noite, precisava ir, acordaria cedo. O pai a levaria ao aeroporto na manhã seguinte. Despediram-se.

- E então, amanhã você vai aparecer por lá para um último adeus?

- Não vou prometer, mas pode ser que eu apareça...

Não eram namorados a rigor. Conheceram-se há uns dois anos numa exposição sobre Portinari. Ele, fotógrafo, cobria o evento para um jornal. Ela, estudante de cinema, buscava nos quadros inspiração para um curta-metragem. Ela o repreendeu quando o fotógrafo sacou a câmera e registrou sua imagem.

- Hei, não te dei permissão para tirar fotos minhas!

- Peço desculpas... é que estou um pouco entediado. Já tirei pelo menos dez fotos de cada quadro desses.

Ela não se conteve ante o argumento do rapaz e sorridente lhe estendeu a mão.

- Prazer, Silvia! E você, como se chama?

- Constantino, mas pode me chamar de Tino. É assim que meus amigos me tratam.

Trocaram telefones, marcaram o primeiro encontro. Por uma questão de economia e praticidade, o apartamento dele acabava sendo o local dos encontros amorosos com Silvia. Ela não parecia se importar muito, achava tudo até certo ponto exótico e divertido. Os dois viviam em universos completamente diferentes, mas resolviam sem dificuldades as diferenças entre quatro paredes.

No pequeno apartamento, o único adereço de decoração na sala era a figura imponente de Che Guevara emoldurada na parede, empunhando um charuto Cohiba, o preferido do companheiro Fidel. Jornalista de formação, Tino acabou descambando para a fotografia, já que se dizia um redator incompreendido, cujo estilo minimalista somente seria reconhecido dali a cinquenta anos.

Silvia era filha única de um próspero industrial do ramo têxtil. Os tecidos fabricados pelo pai começavam a ser exportados para alguns países da América Latina. Ela não sabia o que era passar dificuldades. Já Tino perdera o pai ainda cedo, aos 9 anos de idade. A mãe, enfermeira, fazia o possível para que nada faltasse a ele e ao irmão mais novo. Aos catorze, deixou a casa da mãe e foi para a capital, onde concluiu o ensino médio e iniciou o curso de jornalismo. Ganhava a vida como freelancer, vivia no limiar da dureza, mas como um bom lutador de boxe, não baixava a guarda para as vicissitudes da vida.

- Você bem que podia vir comigo para Los Angeles. Você sabe que tenho condições de custear nós dois... além disso, logo você arrumaria um emprego por lá! – dizia Silvia na véspera da partida.

- Eu, nos Estados Unidos, sustentado por você? Jamais aceitaria isso. E que emprego me aguardaria por lá, entregador de pizza? Se ainda fosse Cuba, quem sabe eu pensasse melhor na sua proposta. – respondia Tino, com certo ar de indignação.

- Cuba! Havana não passa de uma cidade em ruínas, com seus carros enferrujados, prédios prestes a cair, prostitutas espalhadas pelos becos escuros esperando que algum turista desembolse uns poucos dólares em troca de sexo. É a decadência em estado bruto. O que você faria lá?

- Um país decadente para pessoas decadentes! Lá seria o ideal pra mim! – retorquiu Constantino.

Ela abandonou a discussão. Ele acendeu um cigarro e foi até a cozinha, de onde voltou com meia garrafa de uísque e dois copos.

- Tá frio lá fora. Melhor a gente beber um pouco.

- Fecha a janela antes.

Ele se levantou, ficou parado por alguns instantes na janela de onde contemplou o movimento das ruas enquanto soltava a fumaça do cigarro.

- Então quer dizer que a moça vai pra Califórnia, estudar cinema em Los Angeles! Em pouco tempo ficará íntima dos grandes estúdios, testemunhará a vida das celebridades de Hollywood e caminhará em meio àquele lixo que permeia a mente dos norte-americanos. Só espero que você não se esqueça do seu país. Aqui a gente tem matéria prima de sobra pra colocar no cinema.

- Eu não vou me esquecer de você, Constantino!

Tino deu um trago no uísque e curvou um pouco a cabeça.

- Não prometa aquilo que não é passível de promessas. Por quanto tempo você ficará lá? Dois, três, cinco anos? Não importa. O roteiro é sempre o mesmo: a estudante estrangeira desperta a curiosidade de todos, professores, colegas, enfim. Até que um belo dia ela encontra o sujeito perfeito, o típico californiano, pele bronzeada, olhos azuis e cabelos loiros. Um bom sujeito, diga-se de passagem, modelo de pai ideal, com quem ela terá dois filhos e viverá feliz para sempre!

- Não gostei muito do seu roteiro. Achei piegas, previsível.

Ele ficou em silêncio, olhando em direção à janela que não ficou totalmente fechada.

- E o seu livro, já concluiu? – perguntou Silvia, tentando reestabelecer o diálogo.

 - Na verdade acho que não comentei com você, mas comecei a escrever outra história...

Há cinco anos ele começara a escrever sobre a história de um guerrilheiro que mesmo após ter sido torturado pelos militares e ficado cego, caminhou por duas semanas em meio à selva e conseguiu se salvar, graças a ajuda de índios que cuidaram dele. Nem ele próprio sabia se aquilo era ficção ou realidade. Seu dilema era contar o desfecho real da história ou dar um final digno ao seu personagem, já que em vida o herói foi acusado de ter engravidado uma indiazinha adolescente da tribo que o acolheu.

- Por que você não me contou sobre o novo livro? Como você é egoísta!

- Não tenho nada de concreto ainda, são apenas rascunhos. Assim que eu concluir os primeiros dois capítulos, eu te mando, pode ser?

Não havia livro nenhum, a não ser a história do guerrilheiro estuprador. Constantino assistia a felicidade dançando nos olhos de Silvia ante a perspectiva de realizar um sonho antigo, colocar em prática um projeto que por anos alimentara. Ele não tinha projeto algum, não queria parecer uma nulidade para ela. A vida medíocre que levava não lhe dava perspectiva de futuro. Sua única preocupação era conseguir alguma foto interessante no dia seguinte, fosse um momento de dor ou uma alegria clandestina, e sair batendo na porta dos jornais em busca da melhor oferta.

Silvia... no fundo achava graça em saber como ela permaneceu ao seu lado por tanto tempo. O que vira nele? Moça rica, boa família, poderia ter namorado caras bem sucedidos, mas preferia ficar ali naquele quarto minúsculo, respirando o ar que recendia à nicotina e desodorante barato. Por um último momento acariciou sua pele branca, respirou o seu perfume importado, Dolce & Gabbana, ela dizia. Beijou-a. Tentou guardar o sabor do seu hálito, mas no momento em que os lábios se desprenderam o gosto se desfez, assim como a fumaça que se dilui no ar.

Olhou-a calmamente com seus olhos de fotógrafo, buscando o melhor enquadramento, de modo que aquela fosse a última imagem dela a cristalizar-se em suas retinas. Ela levantou-se, vestiu a roupa e saiu. Sabia que ele não apareceria na manhã seguinte.

Ele permaneceu imóvel na cama, os olhos fixos na janela entreaberta. Por um instante considerou a possibilidade de ir ao aeroporto para se despedir de Silvia. Naquele momento foi tomado de sobressalto por uma estranha constatação, a de que jamais se encontraram à luz do dia. Melhor assim, as sombras da noite cuidam de encobrir certos defeitos e fraquezas humanas. Acendeu novo cigarro. Mesmo com o coração pungente, sabia manter-se ereto, a cabeça erguida, ainda que ensanguentada, e esquivar-se das armadilhas do destino, como o fazem os grandes boxeadores.

* * *

Goiânia, 27 set. 2010.

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