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Um funeral

Mais de um ano e o velho naquele morre-não-morre. Há mais de um mês o caixão de alças douradas e forro acetinado branco descansava em pé, acumulando poeira junto à porta de entrada da sala. Arlete, a filha mais velha - ele, pai de sete - a solteirona, a que nunca se casou, a quem cabia a árdua tarefa de alimentar, medicar e limpar os excrementos e secreções do velho, convocou os outros irmãos para a despedida. Era certo que agora ele morria.

A família toda reunida, filhos, genros, noras e netos em torno da cama do velho. Uma nuvem negra parecia pairar sobre o ambiente em meio aos semblantes consternados. O velho, todavia, permanecia imóvel, os olhos esbugalhados, na vã tentativa de decifrar o que acontecia.

Ainda não foi naquela manhã. À noite, porém, prorrompeu numa tosse rouca que lhe roubava o ar. O peito murcho arfava. Sob a magreza do tórax entrevia-se em relevo suas costelas arqueadas, frágeis estruturas capazes de se desfazerem ao menor esforço. Mais uma noite, e o velho sobreviveu.

Acordou cansado, é verdade. Além da parentela, encontrava-se no quarto um padre, a postos para realizar a extrema unção. O padre encomendou uma vela para cada um dos presentes. Dispuseram-se ordenadamente ao redor da cama. Um menino começou a chorar depois que a cera quente lhe queimou o indicador. O velho, mais uma vez, não compreendia nada.

Subitamente, o baú de memórias entreabriu-se. Reconheceu um a um os presentes. Patéticos, achava aquilo tudo um insuportável fastio. Grande maçada me aprontaram esses idiotas. E o padre Monteiro, o que quer ele aqui? Não passa de um urubu gordo e careca, ainda vai visitar e cobrar caro de outras famílias só para dizer meia dúzia de tolices - pensava com certo ar de desprezo, embora sua fisionomia fosse incapaz de expressar qualquer sentimento a não ser aquele ar de quem só existe além da vida.

Sentiu náuseas ao ver um dos garotos expelindo catarro pelo nariz e levando a língua para lambê-lo. Desgostou-se ao ver o quão eram feias e gordas as noras e inúteis e parvos os genros. Que bela família. Fosse um piloto de avião a conduzi-los, apertaria o botão ejetor só para ter o prazer de vê-lo chocar contra o solo, desfazendo-se em partículas carbonizadas, irreconhecíveis para todo o sempre.

O peito começou a chiar. O oxigênio ia ficando rarefeito. Era chegada a hora. Enquanto conduzia a ladainha, padre Monteiro cobriu seu corpo até o pescoço. Posicionou as duas mãos do velho sobre o peito, uma em cima da outra, e entre elas um crucifixo. Num último esforço, o velho fixou seus olhos mortos nos olhos gordos do padre e perguntou:

- É procissão?

O padre ungiu sua testa, fazendo o sinal da cruz.

- Vai à merda então... - disse o velho, em suas últimas palavras.

E no fecho da vida um sino seco, agudo, ensurdecedor e inútil.

* * *

Goiânia, ano de 2004.
 
Glauber Ramos

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