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SUFOCO

O frio da madrugada afugentava os últimos notívagos, séquito de vagabundos, bêbados, viciados e prostitutas, gente das sombras. A um único homem pertencia a grande avenida naquele momento, em pleno centro da cidade. Sem olhar para trás, ele segue firme e rápido em sua missão. Um forte barulho faz seu coração palpitar.

A moto sumiu rapidamente, mas seu som ainda se fez presente por alguns segundos, multiplicados em longos minutos na cabeça do sujeito apressado. Cautelosamente, mete a mão esquerda sob a jaqueta para conferir se o embrulho está bem acondicionado no calor de sua axila direita.

Para tentar distrair a mente, olhava algumas vitrines ao longo da avenida. Aquele mundo de cores vivas e alegres estampadas em longos vestidos de seda contrastava profundamente com sua realidade. Por um momento deixou-se conduzir por devaneios, onde sua mãe inválida dançava alegremente, rodopiando a barra de um daqueles vestidos. Teve ódio e vontade de estraçalhar algumas vidraças, mas o tempo se tornava escasso e urgia que apressasse ainda mais seu caminhar.

Ao longe escutou estampidos, quiçá tiros. Pensou que seria melhor mudar de rota, mas a avenida era o caminho mais curto e, além disso, corria o risco de se perder, pois naquele dia não estava em seu território costumeiro.

Agora teve certeza de que o segundo barulho era de tiros, disparados a algumas quadras dali. Um choro de criança assustada entremeava a madrugada. Caminhava o mais rápido possível, porém tentando não chamar a atenção. Uma viatura passou em sentido perpendicular à avenida e era bem provável que cruzasse com ela algumas ruas abaixo. As mãos, geladas. Meteu-as nos bolsos dianteiros do velho jeans de guerra.

Teso era o seu corpo, resultado do medo e do frio. Não se preocupava em olhar para os lados ao atravessar as ruas, pois toda cidade àquela hora era um grande floresta de concreto escura e adormecida sob confortáveis edredons. Não em sua casa. Sabia o quanto era importante o dinheiro que ia receber.

Um grupo de homens desceu de um carro e conversou rapidamente com alguém que passava por ali, certamente algum mendigo viciado. Reconheceu a viatura, agora com o giroflex desligado. O indivíduo com o qual falaram parece ter dado alguma informação importante, pois a viatura arrancou violentamente, deixando um fétido rastro negro de borracha queimada no asfalto.

Não tinha outro jeito, precisava chegar o quanto antes. Levantou o capuz da jaqueta para proteger as orelhas do frio. Correu o mais rápido que pôde. No viaduto, um homem o esperava.

"Porra! Demorou com isso aí, índio!"

"Pega logo a encomenda, neguim. Fudeu! Some daqui!"

Entregou o embrulho, recebendo em troca um envelope recheado de dinheiro. Guardou o pacote amassado sob o calor da axila esquerda. Ainda escutou outros três disparos enquanto percorria a avenida no sentido oposto. Sabia que naquele momento o sangue ainda quente do companheiro escorria pelo asfalto. Sem muito pensar, adentrou uma rua desconhecida. Cogitou largar essa vida, mas amanhã faria outra entrega, bem mais valiosa.

* * *

Goiânia, junho de 2004. Revisado em 28 de setembro de 2010.

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