segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Nauro Machado

Exegi monumentum aere perennius  (Erigi um monumento mais eterno que o bronze - Horácio)


"Ocupo um espaço que não é meu, mas do universo"


"O mundo restará o mesmo sem minha quota de angústia e sem minha parcela de nada"
(Nauro Machado)


Nauro Machado, poeta maranhense, um gigante desconhecido. Autor de técnica refinada, autodidata, a um só tempo alia a produção em larga escala com a qualidade poética que lhe é peculiar. Mestre dos sonetos - vide a antologia Nau de Urano, lançada em 2002, que comporta mais de 800 poemas redigidos nesta forma. Não há na poesia brasileira atual quem lhe faça frente na confecção de sonetos.

Com mais de cinquenta anos de carreira, Nauro tem em seu currículo cerca de 30 livros de pura poesia.

Sobre Nauro:

É difícil qualificar esses poemas escritos, por assim dizer, no avesso da linguagem. Não é pela compreensão lógica que eles nos atingem, mas pelo sortilégio de um falar desconcertante e único.

(Ferreira Gullar)

Não hesito em colocar Nauro Machado entre os grandes poetas do Brasil de hoje, independente de geração ou idade.

(Antônio Olinto)

Poeta único na poesia brasileira [...] Nauro conseguiu sintetizar numa linguagem tão rarefeita, quase irrespirável, entre o céu e o inferno, o caótico destino humano.

(Cláudio Murilo Leal)

Nauro caminha na contramão de um leitor acostumado com as veleidades do fácil.

(José Aparecido da Silva)

Alta e impressionante poesia.
(Carlos Drummond de Andrade)

Poucos poetas – talvez um Baudelaire, um Antero de Quental, um Augusto dos Anjos – têm, como esse solitário maranhense, enfrentado a tarefa árdua e encantatória de expressar, mas o fazendo sob o regime de uma consciência criadora face às possibilidades do verbo – verbo que é fala, pensamento, imagem e melodia – os ângulos escusos, os obscuros abismos, as cartilagens doloridas e inescrutáveis da estrutura humana.(Hildeberto Barbosa Filho)

Apanha o homem na queda a estágios profundos de impotência e incerteza.
(Donald Schüller)

Uma carreira poética ímpar no contexto literário brasileiro de hoje.
(Alfredo Bosi)

Consciente da qualidade e peculiaridade literária dos seus versos dentro do panorama atual da poesia brasileira, Nauro sabe que escreve não para o leitor presente, embora, como ele mesmo disse, se dá por satisfeito em saber que existem dez ou vinte leitores que admiram sua obra poética. De fato, a poesia de Nauro, ainda ignorada em tempos hodiernos, é um presente para futuros arqueólogos.

. . .

Ofício

Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do meu corpo aqui,
enchendo inúteis quilos de um metro e setenta
e dois centímetros, o humano de quebra.
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio da minha província.
E a minha vida para cima e para baixo,
para baixo sem cima, ponte umbilical
partida, raiz viva de morta inocência.
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe mesmo do espaço
que ocupo, desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo o vazio que eu sou.
E o mundo, triste bronze de um sino rachado,
o mundo restará o mesmo sem minha quota
de angústia e sem minha parcela de nada.


O Parto

Meu corpo está completo, o homem - não o poeta.
Mas eu quero e é necessário
que me sofra e me solidifique em poeta,
que destrua desde já o supérfluo e o ilusório
e me alucine na essência de mim e das coisas,
para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro,
trazer-me à tona do poema
com um grito de alarma e de alarde:
ser poeta é duro e dura
e consome toda
uma existência. 
  
819

Abre-me as portas, mãe, enquanto as estrelas
buscam em mim agora a treva infinda,
sem luz alguma no meu olhar a vê-las
nessa cegueira a ser da altura vinda.
Assim, mãe, invado tua noite, a sabê-las
eternamente em pó na luz que é finda
só para mim, que vou comigo pelas
manhãs nascendo todas cegas ainda.
Como fazê-las ser de novo vivas?
Como, se nunca delas fui um conviva
às vidas feitas festas para as vistas?
Para arrancá-las da morte onde as pus,
quero essa noite, ó mãe, roubada à luz
do céu que, embora cega, tu conquistas.







Composição


Não é somente da rosa-flor
Perfume-rosa, rosa augusta de
Perfilados dentes alvos
Que se colhem palavras para a
Composição do poema
(palavras densas de açúcar como o são
as passas estragadas; palavra-confeito
que se desfaz na boca, espraiando-se
pelas glândulas salivares)

Reter a paisagem, descobrir
O vocábulo entranhado no coração
Dos monturos, a palavra inservível
Presa de si mesma
Verbo em decomposição, destilando
Odores de metano

Esperar a noite, o cair da noite
O desenlaço de suas pétalas noturnas
E das sombras ver surgir
Seu tropel de criaturas segregadas

Vinde palavras prostitutas, ébrias,
Indigentes, viciadas de toda espécie
Escutai o bater de asas, um anjo
Por ti está em vigília
Ainda que um anjo coxo
Espécie de Quasímodo alado

Adentrai vossa casa, não temeis
Mesmo que edificada sobre o
Moralismo movediço de tratados
E convenções

Repousai na face virgem e alcalina
Do papel
Inaugurai nesta nova pátria inominada
Sob o estatuto do mencionado impossível
O tempo do caos transcendente

* * *

Goiânia, 23 de junho de 2006

domingo, 30 de janeiro de 2011

O mistério da mulher

foto de Henri Cartier-Bresson
Rua Cuauhtemoctzin, Cidade do México
 
"O mistério da mulher está em cada afirmação ou abstinência, na malícia das plausíveis revelações, no suborno das silenciosas palavras" 
(Henriqueta Lisboa, poeta mineira)

Chega de saudade

Chega de Saudade, de João Gilberto: marco inicial da Bossa Nova


reencontro entre Tom Jobim e João Gilberto após 30 anos

Quintanares

Já que falamos em saudade...















Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!
          (Mario Quintana)

30 de janeiro - Dia da saudade

Dia da Saudade

No dia 30 de janeiro comemora-se o dia da saudade. Segundo os linguistas, a palavra saudade deriva do latim solitatis (solidão). Mas esta não é a verdadeira acepção do vocábulo, não como a conhecemos e experimentamos no dia-a-dia. Sentir saudades é inerente à condição humana. Diante dela, temos a consciência da nossa limitação, pois ela nos mostra que somos incapazes de abarcar e reter as emoções que permeiam nossas vidas.  Assim, não podemos prender ao nosso lado a existência das pessoas queridas, que mais cedo ou mais tarde partem para outro lugar, seja nesta ou noutra dimensão; também nos é impossível eternizar os momentos de gozo, pois atrelada aos braços do tempo, com palavras cruéis a saudade nos diz que somos efêmeros.

Por fim, chegamos à dura conclusão de que a saudade é imortal. Matar a saudade não significa aniquilá-la para sempre. Quando muito, satisfazemos momentaneamente as lembranças que nos invadem o peito, seja olhando uma velha fotografia, seja falando ao telefone com quem está em outro país, seja respirando o perfume da amada que partiu num átimo de devaneio. Não demora muito, ao fecharmos o livro de memórias ela reaparece, sentada num canto, pálida e majestosa, ostentando o seu olhar distante encravado na face de porcelana.

Para aqueles que neste dia de domingo se sentirem acometidos por alguma espécie de saudade, eu vos saúdo: um brinde!

sábado, 29 de janeiro de 2011

Jorge Ben e Tim Maia - 1981

Encontro antológico dessas duas legendas da música brasileira, representantes maiores da nossa black music. Juntos, cantando a música Lorraine, de Jorge Ben. Firmeza!

O negro fala sobre rios

James Langston Hughes

Conheço rios:
Conheço rios tão antigos quanto o mundo e mais
          [ velhos que o fluxo de sangue humano
          [ nas veias humanas.

Minha alma se tornou profunda como os rios.

Banhei-me no Eufrates quando eram jovens as
                                                   [ auroras.
Construí minha cabana junto ao Congo e ele
                          [ me cantou canções de ninar.

Olhei para o Nilo e acima dele levantei as
                                                     [ pirâmides.
Ouvi o canto do Mississippi quando Abe Lincoln
    [ desceu até New Orleans e vi seu seio
    [ lamacento tornar-se ouro, ao pôr-do-sol.

Conheço rios:
Antigos, cinzentos rios.    

Minha alma se tornou profunda como os rios.


(Langston Hughes)

Buena Vista Social Club


Tudo começou no ano de 1996, quando o músico e produtor norte-americano Ry Cooder viajou para Cuba, onde gravou um disco com a participação de vários músicos cubanos, em sua grande maioria velhos artistas já caídos no esquecimento.

Em 1998 o diretor de cinema Wim Wenders, amigo de Cooder, acompanhou este em nova viagem à Cuba, onde gravaria um disco solo de um desses artistas, o cantor Ibrahim Ferrer, considerado uma espécie de Nat King Cole cubano. Wenders não perdeu tempo e registrou a velha guarda cubana em ação. Assim, o mundo pode conhecer o talento desses verdadeiros gênios da música, como Ibrahim Ferrer, o compositor e cantor Compay Segundo, os violonistas Eliades Ochoa e Barbarito Torres, a encantadora cantora Omara Portundo e o carismático pianista Rubén González, entre tantos outros.

Com a ditadura castrista, esses artistas foram obrigados a abandonar a arte em busca da sobrevivência. Ibrahim Ferrer, por exemplo, trabalhava como engraxate nas ruas de Havana.

Uma das partes mais emocionantes do documentário é quando eles viajam para a Holanda e os Estados Unidos, onde fizeram shows para platéias lotadas. Caminhando pelas ruas de Nova York, se encantaram com os arranha-céus e as vitrines enfeitadas, realidade tão diferente daquela encontrada em Cuba. Sorte terem vivido o suficiente para desfrutar desse momento de glória.

Nota: Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e Rubén González já faleceram. Que tenham encontrado o merecido descanso nas planícies celestiais.

 
Chan Chan - Eliades Ochoa e Compay Segundo

 
Guantanamera - Compay Segundo e Omara Portuondo

 Perfidia - Ibrahim Ferrer

Quizas Quizas Quizas - Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo

Cumbanchero - com Rubén González ao piano

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS




Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


(Wislawa Szymborska)




Conheça mais sobre a autora clicando AQUI!

Concert for George

 
Em 29 de novembro de 2002 foi realizado em Londres, na tradicional sala de espetáculos Royal Albert Hall, um concerto beneficente reunindo grandes nomes da música mundial em memória ao beatle George Harrison, que falecera exatamente um ano antes do concerto.
 
Entre os presentes, os ex-beatles Paul McCartney e Ringo Starr, o músico indiano Ravi Shankar, o guitarrista Eric Clapton, o músico Billy Preston, também já falecido, além do filho único de George, Dhani Harrison, cuja semelhança física com o pai é impressionante. Durante o espetáculo, foram interpretadas canções de autoria de George Harrison, compostas tanto no período dos Beatles quanto durante sua carreira solo.

Muito ligado à espiritualidade, George Harrison, o beatle tímido e introspectivo, conseguia transmitir através de suas músicas um sentimento de quietude e ternura. Nada como escutar suas canções reconfortantes em tempos difícieis e áridos como os de hoje.

 
Something - interpretada por Paul McCartney e Eric Clapton

 
Isn't it a pity - por Eric Clapton e Billy Preston

George Harrison interpretando My Sweet Lord

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Crazy Heart

Jeff Bridges é um desses raros atores capazes de dar vida a um personagem a tal ponto de se tornar impossível enxergar a fronteira que separa o papel do ator. Em Crazy Heart (Coração Louco), Bridges é Bad Blake, um cantor de música country outrora famoso, mas hoje decadente, solitário e afundado no vício do álcool. Com sua velha camionete, Bad Blake percorre o interior do país levando sua música para fãs cada vez mais raros, tocando em palcos decadentes e melancólicos.


Todavia, Bad Blake não é uma figura que inspira pena. Ao contrário, ele é um símbolo de resistência ao mercado milionário da música country americana. Empunhando sua rebeldia e abraçado a uma garrafa de uísque, Blake nos mostra que um verdadeiro artista é aquele que acredita na essência da sua arte, esta sim, sem preço estipulável. Uma bela película.

 Música Hold on you, na voz de Bad Blake (Jeff Bridges)


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O pavão - crônica de Rubem Braga


Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
 
Rio, novembro, 1958

Extinção


Indiferença

"A indiferença nada mais é que a incapacidade de perceber as diferenças.
É um estado anormal, no qual perde a nitidez a fronteira entre a luz e a escuridão, a alvorada e o crepúsculo, o crime e o castigo, a crueldade e a compaixão, o talento e a mediocridade.
Assim é a indiferença!"
(Elie Wiesel)

Drummondianas

Em face dos últimos acontecimentos

Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
que o nosso avô português?


Oh! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.
 

A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer
como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).


Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
que o melhor é ser pornográfico.

Propõe isso ao teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher da trouxa de roupa.
 
Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos?

Carlos Drummond de Andrade

Quintal das lembranças

João Nogueira - Carioca, suburbano, mulato e malandro

É bem verdade que o nome de João Nogueira voltou à mídia graças ao desempenho do seu filho, o talentoso cantor e compositor Diogo Nogueira. Mas justiça seja feita. João Nogueira é um dos grandes nomes do samba brasileiro, mentor do chamado “samba de calçada”, de caráter nitidamente suburbano, retrato da periferia e da velha malandragem carioca.

João Nogueira teve em Paulo César Pinheiro o grande parceiro de letras. Já a voz principal, responsável por propagar as composições de João e PC Pinheiro foi a da imortal Clara Nunes. Com um trio desses, é impossível imaginar que João Nogueira não tenha seu nome marcado na história da música brasileira. Saravá, João Nogueira!


Mineira - música feita em homenagem a Clara Nunes. Ao fundo, um jovem Raphael Rabello no violão.


 Espelho - música de João Nogueira e PC Pinheiro

 Diogo Nogueira - Além do espelho

Garimpos

GARIMPOS

na tênue superfície do cotidiano
fragmentos banais se revelam:

o copo quebrado que numa noite profunda
matou a sede do velho pescador

cartas que um dia pediram notícias
ou que apenas trouxeram a saudade de quem
há muito partira

o sorriso da jovem em seu vestido branco
de primeira comunhão

o espelho da toalete onde anos a fio o pai
viu-se endireitando a gravata antes de sair
para o trabalho

assim caminhamos pela vida
a bordo de naus cegas em pleno nevoeiro
gravando no mundo nossas cicatrizes

e quando não mais vagarem pelas ruas
as sombras errantes dos nossos feitos
e de nós se esquecerem todos os adeuses
surgirá alguém a vasculhar
por entre as fendas congeladas do passado
o cemitério de antigas lembranças

* * *

Goiânia, maio 2008

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Quintal das lembranças


Maestro Tom Jobim – 84 anos

Hoje, caso vivo estivesse, o maestro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim completaria 84 anos. O “Tom do Vinicius”, como era chamado no início da carreira, antes de consagrar-se, em referência ao parceiro eterno Vinicius de Moraes, já bastante conhecido naquela época. Como não era famoso, ao tratar com produtores e outras pessoas do meio musical, sempre era questionado sobre sua identidade. “Mas quem é você mesmo?” – perguntavam. “Eu sou o maestro Tom Jobim, o Tom do Vinicius!”.

Mas logo o maestro conquistou não só o país, mas o mundo com sua música. É verdade que Tom Jobim desejava mesmo era ser um compositor clássico, assim como o seu maior influenciador, o maestro Heitor Villa-Lobos. Nesse particular, Tom Jobim foi um compositor mediano. Mas foi com a música dita popular que ele se tornou um dos maiores do mundo, escrevendo, sobretudo com o parceiro Vinicius de Moraes, aquele que é considerado o mais importante capítulo da música brasileira.

Para nós que aqui continuamos, só uma coisa a dizer: obrigado, Maestro!

Trechos do Especial As Nascentes com Tom Jobim exibidos no quadro Arquivo do Radiola na TV Cultura.



Música Passarim


Chega de Saudade

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

João do Vale - um artista do povo


Já havia escrito aqui sobre João do Vale há algum tempo (Quintal das lembranças - parte IV). Minha intenção agora é ressuscitar uma crônica que escrevi a seu respeito, intitulada "O carcará encantado", a seguir reproduzida.


O carcará encantado

Numa dessas manhãs nubladas em que a vida se enche de saudosismo, fui tomado pelas memórias do meu tempo como estagiário de direito, em especial aquelas dos dias em que a instituição na qual servia entrou em greve. Na ocasião, por determinação da chefia superior, ao menos um dos estagiários deveria ficar de plantão em cada turno, a fim de atender algum caso urgente que viesse a aparecer.

Dentre as pessoas que laboravam na repartição, guardo ainda viva a lembrança da faxineira que diariamente limpava o lugar, de nome Andréia, que a todos cativava com seu jeito simples e espontâneo. Não me recordo, porém, se ela alguma vez chegou a pronunciar meu nome, pois usualmente tratava a todos pelo epíteto “irmão”.

O fato é que a “irmã” Andréia estava grávida; a barriga proeminente denunciava que o parto estava próximo. Em algumas ocasiões a surpreendi fumando no estacionamento. Chamava sua atenção, explicando que o cigarro era prejudicial a ela e ao bebê. “Vou fumar só esse por hoje, irmão” – displicentemente respondia.

Em um dia modorrento, onde o tempo se arrastava com a velocidade de um velho caramujo, a “irmã” adentrou a minha sala, encontrando-me diante do computador ouvindo uma rádio virtual. Pelos alto-falantes saía o memorável show Opinião, estrelado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Ali, naquelas vozes, vários “Brasis” se encontravam: a classe média carioca, representada pela bossa nova de Nara Leão; o morro e suas súplicas, suas alegrias e tristezas, cantadas por um dos seus intérpretes maiores, Zé Keti; e o Brasil "de dentro", da caatinga e de todos os sertões afins, representado pelo lirismo sertanejo do inesquecível João do Vale.

Mas eram as letras e a história de vida do maranhense João do Vale que me levavam a um outro lugar, certamente alguma gleba perdida na infância. Igualmente maranhense, só que pela linhagem paterna, para mim seria impossível não encontrar nele laços de identidade. Em 1996, quando da sua morte, foi noticiado o falecimento do autor de “Carcará”, música imortalizada na voz de Maria Bethânia. Menino analfabeto de Pedreiras, interior do Maranhão, fugiu de casa para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Mesmo tendo sido gravado por nomes como Edu Lobo, Fagner, Tim Maia, Zé Ramalho, Chico Buarque, Tom Jobim, Miúcha, Paulinho da Viola, entre tantos outros, João do Vale foi relegado à vala comum do esquecimento.

Sobre a “irmã” que naquela ocasião me espreitava curiosa... perguntei a ela se já tinha ouvido falar naquele nome, João do Vale. Sem alarde, para meu espanto ela respondeu: “Ele era meu tio, irmão”. Quis saber então onde ela tinha nascido. “Eu nasci em Pedreiras, lá no Maranhão”. Fiz outras perguntas, e as respostas condiziam fielmente com a biografia dele. Andréia então me relatou que João do Vale era irmão de sua avó materna. Ela mesma o vira algumas vezes, quando criança. E disse-me que João era um homem simples, tendo como fraqueza maior a cachaça. Contou ainda sobre o retorno dele a Pedreiras, em definitivo, já vitimado por um derrame. E falou-me da praça que leva o seu nome, e do seu local de nascimento, Lago da Onça, zona rural daquele município.

Nunca mais tive notícias de Andréia, mas espero que ela tenha largado o cigarro. Sobre João do Vale, ainda acredito que ele e sua obra serão imortalizados. Afinal, como certa vez escreveu outro João, de sobrenome Guimarães Rosa, “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

* * *

Goiânia, 30 de agosto de 2009.




Chico Buarque e João do Vale intepretando "Carcará"

Apenas um rapaz latino americano


Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes decretou exílio por vontade própria. Ou talvez não. Talvez a grande mídia tenha tratado de exilar esse grande artista justamente por considerá-lo hermético e, consequentemente, "não popular". Não sei dizer se Belchior já retornou do Uruguai, onde trabalhava na tradução da sua obra para a língua espanhola. O fato é que há uma deficiência cultural a ser suprida urgentemente em nosso país, e Belchior ainda é um dos poucos artistas capazes de resgatar-nos da pobreza que vivenciamos.





"Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos, sonhos matinais
Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia,
E meu delírio é a experiência com coisas reais"

(trecho da música Alucinação)





Quintal das lembranças

Dorival Caymmi e Renato Russo

Tão belo quanto inusitado foi este encontro entre o monumental Dorival Caymmi e o genial Renato Russo, promovido pelo programa "Por acaso", da Band. O ano do evento, conforme informação contida no vídeo, seria 1994. Vale a pena conferir o dueto interpretando a canção "Só louco", de Dorival Caymmi.

Quintal das lembranças



Baden Powell de Aquino

"O violão é minha metade"


Baden Powell em Paris

Travessia das horas


O dia ao largo, com suas raias estendidas
Sobre a superfície da manhã
O sol do oriente se espraia pelo espelho
Das águas, quase cego vislumbro
Um agitar de folhas, zéfiro que sopra
Do oeste, convite para íntimas navegações

Vida em suspeição
Como antigos cristais balouçando
No limiar da navalha

Braços alados, abarco as dimensões
Aquáticas, o coração a fremir em
Arroubos espasmódicos
Maldição de quem não se afez
Às turbulências marinhas

E no fim de tudo
Atravessam-se manhãs, primaveras, decênios
A cidade extinta e seus jardins submersos
Presente para futuros arqueólogos