quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Quintal das lembranças - parte III


Sir John "The Ox" Entwistle
O revolucionário do baixo

Dando sequência aos modestos "ensaios biográficos" já postados aqui, resolvi mudar de vertente, que até então baseava-se no binômio samba/bossa nova, para trazer um pouco dos outros universos que entremeiam as lucubrações deste blogueiro. Por outro lado, gostaria de advertir que não possuo qualquer formação musical ou literária. Antes sim sou movido pela curiosidade em apreender e aprender sobre aquilo que julgo possuidor de qualidade, sem qualquer reserva de estilo ou preconceito.

Sempre considerei que o baixo nunca teve a mesma badalação que a guitarra e a bateria numa banda de rock, justamente por ser um instrumento de apoio. Nomes como Hendrix, Eric Clapton e Jimmy Page fazem parte do imaginário dos apreciadores do bom e velho rock'n roll. Todavia, se perguntados a responder o nome de meia dúzia de baixistas, dificilmente completarão a lista.

E foi no terreno das 4 cordas que John Alec Entwistle (Londres, 09/11/1944; Las Vegas, 27/06/2002) escreveu para sempre o seu nome na história da música mundial.

John Entwistle, ao lado do excelente guitarrista Pete Townshend, do ensandecido vocalista Roger Daltrey, e do lendário e "lunático" baterista Keith Moon (em breve falarei dele), falecido em 1978, formaram aquela que para mim, juntamente com o Led Zeppelin, são as duas maiores bandas de rock que já existiram - o The Who.

O fato é que grupo começou com Daltrey e Townshend dividindo os acordes de guitarra, até que Roger desistiu do instrumento. A mudança para uma única guitarra foi essencial para Entwistle (apelidado de "The Ox"), que passou a tocar acordes extremamente altos e intrincados para compensar a falta de uma guitarra rítmica - o resultado foi, dos primeiros singles do Who até o seu último sucesso, a transformação do trabalho do baixo de Entwistle em um dos mais complexos e audíveis do rock.

Entwistle desenvolveu o que ele chamava de estilo '"datilógrafo" de tocar baixo. Consistia em posicionar a mão direita sobre as cordas para que os quatro dedos pudessem ser usados para bater percussivamente nas mesmas, fazendo com que elas atingissem o braço com um distinto som agudo. Isso dava ao músico a habilidade de tocar três ou quatro cordas de uma só vez, ou de usar diversos dedos em uma só corda, além de permitir a criação de passagens bastante percussivas e melódicas. Ele usava esta técnica para imitar os preenchimentos usados pelos bateristas, às vezes antes mesmo que os bateristas tivessem a oportunidade de fazê-los.

John identificava suas influências como uma combinação de seu treinamento formal ao trompete, trompa e piano, o que dava a seus dedos uma força e flexibilidade ímpares. Juntamente com os guitarristas de rock Duane Eddy e Gene Vincent, e baixistas de soul e R&B como James Jamerson, ele é considerado um pioneiro nas técnicas de baixo. Entwistle foi a influência primordial de gerações de baixistas e continua a aparecer em enquentes sobre os "melhores baixistas" em revistas musicais. Em 2000, a revista Guitar nomeou John Entwistle o "Baixista do Milênio" numa enquente entre seus leitores.

John Entwistle era um sujeito introspectivo, que raramente falava durante os shows, a não ser quando cantava algumas canções de sua autoria, juntamente com Roger Daltrey e Pete Townshend. As apresentações do The Who tornaram-se históricas, quando ao final dos shows os instrumentos, mormente a bateria de Keith Moon e a guitarra de Pete Townshend, eram destruídos. Todavia, nesses momentos John mantinha uma postura sóbria, de modo a manter intacto o instrumento que o consagrou.

O baixista faleceu em Las Vegas, em 27 de junho de 2002. O laudo médico apontou a presença de cocaína em seu organismo, embora em pequena quantidade. Todavia, John possuía um grave problema nas artérias coronárias, de modo que o uso da droga alavancou um ataque cardíaco.


solo de baixo de John Entwistle na música 5:15

Ferreira Gullar


MAIO 1964

Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famílias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.

Estou aqui. O espelho
não guardará a marca desse rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.

(Ferreira Gullar)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Meu caro poeta...

Vinicius de Moraes e Rubem Braga. A simpática senhora infelizmente desconheço.

Meu caro Vinicius de Moraes,

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira primavera de 1913 para cá sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua. E nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nessa primavera. Acho que você aprovaria.

O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois um sudoeste com chuva e frio. São violências primaveris.

O tempo vai passando, poeta. Chega a primavera nessa Ipanema toda cheia de sua música e de seus versos, e eu ainda vou ficando um pouco por aqui, a vigiar em seu nome as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.

Adeus.

texto de RUBEM BRAGA


Tarde em Itapuã - Vinicius e Toquinho

Quintal das lembranças - parte II




Rubem Braga - o fazendeiro do ar



"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São
Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em
voz baixa:

"Eu sou lá de Cachoeiro..."


Quando se fala em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, alguns saberão tratar-se da cidade em que nasceu o cantor Roberto Carlos. E pouquíssimos mencionarão o nome do escritor Rubem Braga, que lá nasceu em 12 de janeiro de 1913, e sempre levou consigo as lembranças da sua terra natal, com as quais preencheu boa parte das crônicas que escreveu.

Aos 15 anos foi enviado pela família para Niterói-RJ, onde moravam alguns parentes. Cursou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, tendo-se formado em 1932 na capital mineira. Além do Rio e BH, o velho Braga morou em São Paulo, Porto Alegre, Recife, Paris, Santiago e Rabat, capital do Marrocos, onde exerceu a função de embaixador, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. Como jornalista, acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na Itália, em luta contra as tropas fascistas. "Guerra é coisa triste", e concluiu: "Brincadeira de homem. Só tem homem lá". Mas não tinha vocação para cidadão do mundo. Certa vez escreveu: "Sou um homem do interior. Às vezes penso que merecia ser goiano".

Rubem Braga tinha o dom de garimpar na superfície do cotidiano um profundo sentimento lírico, ao qual ele alinhava o seu modo introspectivo de perceber a vida. Nada lhe escapava: pessoas, paisagens, os estados da alma, a natureza. Em particular, Braga elegeu a figura feminina como ponto central dos textos que escrevia. Para ele, a mulher representava "Um belo momento da aventura do ser humano sobre a Terra". Fosse um sorriso, um olhar furtivo, o perfume, uma luva, uma carta amarelecida pelo tempo, ou mesmo a simples presença despretenciosa de uma mulher ao seu lado, lá estava o Braga a confabular teorias sobre o espírito feminino.

Seus textos, escritos em linguagem simples e cristalina, não raro dão a passageira ilusão aos leitores de que também são capazes de escrever assim. Como definiu o poeta Hélio Pellegrino, trata-se da "difícil arte de escrever fácil". Talvez esta circunstância explique a sua predileção por um verso de Camões, o qual diz: "A grande dor das coisas que passaram".

Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.

A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.


Fontes de pesquisa:

Revista Vida Simples, abril de 2006.


* * *

O Verão e as Mulheres


Rubem Braga


Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.

Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.

Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.

Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.

Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.
Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.

Março, 1953.

Extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 27.

O Pavão


Rubem Braga


Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rio, novembro, 1958.

Texto extraído do livro "Ai de ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Quintal das lembranças - parte I


Cartola - Música para os olhos

Se nos dias atuais, o termo "favela" nos remete à lembrança de bailes funk e e disputa pelo tráfico de drogas, já houve um tempo em que essas comunidades abrigavam em seu seio a poesia brasileira em estado puro, expressada na forma de letras de samba.

Não, a poesia não abandonou as favelas. Todavia, diferentemente do samba de Zé Keti, o qual dizia que "eu sou o samba/a voz do morro sou eu mesmo sim, senhor...", morros e favelas ganharam novas formas de expressão. Não se quer aqui discutir a qualidade do que é produzido hoje nas comunidades, mas apenas fazer a constatação de que a poesia do samba está cada vez mais presente no passado. Nomes como Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Carlos Cachaça, Guilherme de Brito, Heitor dos Prazeres e tantos outros ainda resistem no quintal das lembranças... mas até quando?

Pelo menos há o conforto em saber que o nome de Angenor de Oliveira, o mestre Cartola, ainda perdurará por longos anos. Pode-se dizer que Cartola representou aquilo que o imaginário brasileiro convencionou denominar "esperança". Nascido pobre no bairro do Catete, Rio de Janeiro, aos 11 anos de idade mudou-se com a família para a Mangueira. Aos 15 anos, a mãe falecida, foi expulso de casa pelo pai, que foi embora da Mangueira levando as irmãs menores.
Nessa época, ouviu o pai dizer a uma vizinha que "ele saía do morro, mas deixava um Oliveira para fazer a vergonha da família".

Semi-analfabeto, pobre, favelado... ainda assim Cartola construiu uma obra monumental. Suas canções, entremeadas por arranjos complexos e harmoniosos, falam de desilusões, amor, nostalgia, esperança. Mas, acima de tudo, revelam a altivez com que o poeta encarava a vida, sempre acreditando em dias melhores. Nem mesmo a velhice era capaz de abalá-lo. Antes sim servia de inspiração para o mestre. Basta lembrarmos da canção "O inverno do meu tempo", na qual Cartola dizia o seguinte:

Surge a alvorada
folhas a voar
e o inverno do meu tempo começa
a brotar, a minar

E os sonhos do passado
no passado estão presentes,
e o amor que não envelhece jamais
eu tenho paz
e ela tem paz

Nossas vidas
muito sofridas
caminhos tortuosos
entre flores e espinhos demais

Já não sinto saudade
saudades de nada que vi
no inverno do tempo da vida
oh! Deus
eu me sinto feliz

Como gostava de dizer, "sua vida podia ser comparada a um cowboy de cinema. Sofreu a vida inteira, mas no fim ele venceu".

Em tempo: para saber mais sobre a vida do poeta, recomendo o documentário "Cartola - música para os olhos", da Globo Filmes.



Cartola interpretando a canção "Peito Vazio"



Cartola, ao lado do seu pai, cantando "O mundo é um moinho"

Iniciando os trabalhos...

Para dar início a este novo projeto, escolhi um texto da lavra deste humilde blogueiro que vos escreve...

EXEGESE

Não é somente da rosa-flor
Perfume-rosa, rosa augusta de
Perfilados dentes alvos
Que se colhem palavras para a
Composição do poema
(palavras densas de açúcar como o são
as passas estragadas; palavra-confeito
que se desfaz na boca, espraiando-se
pelas glândulas salivares)

Reter a paisagem, descobrir
O vocábulo entranhado no coração
Dos monturos, a palavra inservível
Presa de si mesma
Verbo em decomposição, destilando
Odores de metano

Esperar a noite, o cair da noite
O desenlaço de suas pétalas noturnas
E das sombras ver surgir
Seu tropel de criaturas segregadas

Vinde palavras prostitutas, ébrias,
Indigentes, viciadas de toda espécie
Escutai o bater de asas, um anjo
Por ti está em vigília
Ainda que um anjo coxo
Espécie de Quasímodo alado

Adentrai vossa casa, não temeis
Mesmo que edificada sobre o
Moralismo movediço de tratados
E convenções

Repousai na face virgem e alcalina
Do papel
Inaugurai nesta nova pátria inominada
Sob o estatuto do mencionado impossível
O tempo do caos transcendente