Pular para o conteúdo principal

Entre irmãos

Um conto de José J. Veiga


O escritor José J. Veiga
O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, ele regula pelos dezessete anos, justamente o tempo que estive solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos, até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece — um menino nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar para ele em nosso mundo, e com urgência porque ele não pode mais ficar de fora.

A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o meu pai. De repente fere-me a idéia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele.

Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de derrubar todas as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras do couro como mapa de rios em miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer fútil eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele? Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado?

Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa, há muito tempo que tenho morado em hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme, e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia, o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter um cão em um quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe, nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo; mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena que eu mesmo não sinto? Confirmo a proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele suspira e diz que então não viveria num hotel nem de graça.

Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá dentro e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou conhecido que o salve do martírio, mas o sol está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim mesmo — uma caixa de sapato dividida ao meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos — e passava horas à beira do rego afiando a faca, servia para descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez naquele tempo? É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade.

Uma mulher entra na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas, entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede desculpa e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro, detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa assim. Olhamo-nos novamente já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos também que nada podemos fazer para nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária — e idiota — que nem me dou ao trabalho de responder.

Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre , não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto? Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro.

A porta abre-se abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as mãos no peito, olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto:

— Sua mãe está pedindo um padre.

Levantamos os dois de um pulo, dando graças a Deus — que ele nos perdoe — pela oportunidade de escaparmos daquela câmara de suplício.

* * *

José J. Veiga (José Jacintho Pereira Veiga) - escritor goiano, natural de Corumbá de Goiás, onde nasceu em 1915. A assinatura que adotou como escritor (a abreviação do seu segundo nome, Jacintho) foi sugestão do místico amigo Guimarães Rosa. Embora não seja tão conhecido no Brasil, José J. Veiga teve boa parte de sua obra publicada em países como Estados Unidos, Inglaterra, México, Portugal e outros tantos. Sua literatura insere-se dentro do chamado realismo fantástico, que tem entre seus principais autores nomes como Gabriel García Marquez, Jorge Luís Borges e Julio Cortázar. Para muitos, José J. Veiga é considerado o principal escritor desse gênero em língua portuguesa. Faleceu em 1999, aos 84 anos de idade na cidade do Rio de Janeiro, onde viveu por mais de quatro décadas.

 

Conto retirado do livro "Os cavalinhos de Platiplanto" - Editora Bertrand Brasil

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A saudade de Manoel de Barros

Ausente entre nós desde 13 de novembro de 2014, é inegável a falta que o poeta matogrossense Manoel de Barros nos faz. Em tempos de aspereza cada vez mais exacerbada, a ausência da sua candura e o seu olhar onírico sobre a vida faz desse mundo um lugar mais pálido, menos interessante.  A seguir, alguns poemas de Manoel de Barros, para que possamos recobrar a inocência outrora perdida. O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de des...

Bud Spencer & Terence Hill

Se havia algo capaz de me deixar extremamente feliz nos meus anos de infância e adolescência, certamente era quando os reclames do plim-plim anunciavam algum filme da dupla Bud Spencer e Terence Hill na Sessão da Tarde. Era diversão garantida, principalmente pelas atuações formidáveis de Spencer, com seu jeito mal humorado e seus socos potentes, que não raro levavam a nocaute vários adversários de uma só vez. Somente há pouco tempo (Deus salve a Wikipédia) descobri que os dois atores são italianos. Bud Spencer na verdade se chama Carlo Vicente Pedersoli, (Nápoles, 31 de outubro de 1929), e para minha grata surpresa foi um grande nadador, tendo participados das Olimpíadas de 1952, 1956 e 1960. Já Terence Hill, o galã da dupla, atende pelo nome de Mario José Girotti, e nasceu em Veneza no dia 29 de março de 1939. Não sei relacionar o nome dos filmes, porque o que importava para mim era a pancadaria rolando solta. Vale a pena rir um pouco com esses caras. Dois tiras fora de ordem - cen...

Esses chopes dourados

Verdes bandejas de ágata, meus olhos amarelos   caminham para mim pela milésima vez   enquanto estou cercado por brancos azulejos   e amparado por uma toalha de quadros.   No útero deste bar vou me elevando   e saio da noite cheia de ruídos   para a manhã do mar   onde tudo é sal, impossível alquimia   disfarçada num domingo Amável,   esta manhã me aturde, manhã de equívocos   onde um sábado moribundo se entrega sem rancor.   Meu sábado, belíssima ave negra de olho aceso,    cai nas muralhas do sol como um herói melancólico   enquanto o mar abre o sorriso de dentes brancos   lavados na areia alvura.   Caminho para o sol que me atrai mecanicamente:                      ...